No trabalho, a semana começou com mais uma campanha de Natal Solidário. Todos os anos, nesse mesmo período, repetimos um gesto simples: parar um pouco, respirar fundo e ofertar alguma coisa a quem precisa. É como se o calendário, teimoso e sábio, nos lembrasse que a pressa do mundo tem limite e que a solidariedade, mesmo breve, ainda encontra brechas para existir. Um bom Natal para todos.
Aproveitei essa pausa ritual para pensar. Desta vez não me voltei ao campo simbólico, nem às celebrações tradicionais. Preferi seguir outra trilha, mais áspera e necessária, a da economia política do jornalismo, da comunicação, da ecologia e de tudo o que compõe a engrenagem mundial que insiste em rodar mesmo quando deveria parar.
Então me vieram imagens que o noticiário mostra, mas que a rotina cansa de esquecer. O deserto do Atacama coberto por roupas de grife nunca usadas. As tartarugas com canudos no nariz. Focas com redes presas ao corpo e peixes completamente contaminados servidos aos comensais, já que não conseguem se livrar dos detritos ingeridos e muitos, que não são pescados, morrem de fome ingerindo plástico confundido com comida. Afinal, é preciso se desfazer de 2,3 bilhões de toneladas de lixo que produzimos por ano.
O leite derramado, desperdiçado sem cerimônia, e as crianças famélicas que posam sem querer no ambiente tão hostil chamado Terra. O rebanho bovino colossal que nos faz líderes na produção de carne enquanto a fome segue organizada, eficiente e persistente. O ouro dando as cartas na disputa pelos yottabytes. E a pergunta que já não cabe mais nos velhos moldes: não se trata apenas de “para que serve um bilionário?”, mas de “o que fazer com um trilionário?” O que fazer, Dr. Guillotin?
A pergunta que já não cabe mais nos velhos moldes: não se trata apenas de “para que serve um bilionário?”, mas de “o que fazer com um trilionário?”
Enquanto isso, aqui do nosso lado da vida, fazemos ligações pedindo doações, uma lata de leite, um pacote de fraldas geriátricas, um quilo de alimento não perecível. Pequenos pedidos, quase tímidos diante de um planeta que exibe excessos tão estrondosos quanto suas carências. Quantas bolsas de vinte e cinco mil cabem na minha conta de luz não paga?
E, ao fundo, um ruído constante: as bombas em Gaza lembrando que o horror não é exceção, é rotina. Basta mirar do ângulo certo para ver onde fica o inferno e perceber que o capeta, muitas vezes, veste terno e gravata e discursa bonito, cheio de seguranças, cheio de bombas em nome da paz. É dólar ou bitcoin?
O planeta encerra 2025 lembrando, mais uma vez, que a paz virou artigo de colecionador. No Oriente Médio, a Faixa de Gaza segue sob confronto direto entre Israel e Hamas, enquanto Israel também enfrenta o Hezbollah no sul do Líbano. A tensão com o Irã continua após os ataques de junho, deixando a região inteira respirando por aparelhos.
E, ao fundo, um ruído constante: as bombas em Gaza lembrando que o horror não é exceção, é rotina. Basta mirar do ângulo certo para ver onde fica o inferno e perceber que o capeta, muitas vezes, veste terno e gravata e discursa bonito, cheio de seguranças, cheio de bombas em nome da paz.
Na África, o Sudão atravessa mais um ano de guerra, o Congo vive nova escalada de violência e Somália e Nigéria continuam mergulhados em conflitos armados de larga escala. No eixo asiático, Índia e Paquistão voltaram a trocar tiros em maio, Camboja e Tailândia reabriram uma disputa de fronteira e Mianmar permanece em estado permanente de explosão interna. Inocentes continuam morrendo no Natal.
É um mapa de guerras que se repete com a precisão de um relógio quebrado, sempre parado no mesmo horário, sempre anunciando tragédias conhecidas. Nada disso é novidade, mas tudo continua sendo urgente. A cada ciclo, o mundo parece apenas trocar o título do capítulo, nunca o enredo. Inocentes nascem no Natal.
No Brasil da paz, nossa árvore de Natal foi instalada na Praça São Lucas, localizada na comunidade da Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro. Em vermelho e cinza ficaram 117 corpos perfilados no chão, na operação mais letal deflagrada pela polícia do Rio. O Natal começou em 28 de outubro de 2025.
E agora o roteiro pode estar mudando de hemisfério. Depois de décadas como espectadora distante, a América do Sul surge no radar das tensões globais. A Venezuela aparece ameaçada de ganhar um “presente de Natal” que ninguém pediu: bombas. Não no mar, como nos recados recentes, mas no continente, aqui, no chão que pisamos. Para fazer comércio, atire antes.
É aquele lembrete desconfortável de que a história não espera boa vontade e que, quando ela decide bater à porta, o barulho chega antes do aviso. BUM! Mata-se inocentes no Natal.
No Brasil da paz, nossa árvore de Natal foi instalada na Praça São Lucas, localizada na comunidade da Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro. Em vermelho e cinza ficaram 117 corpos perfilados no chão, na operação mais letal deflagrada pela polícia do Rio. O Natal começou em 28 de outubro de 2025.
Feliz Natal.
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Jacqueline Lima Dourado é jornalista, professora de Jornalismo da Universidade Federal do Piauí e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, PPGCOM-UFPI. É doutora e pós-doutora em Comunicação, líder do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Economia Política e Diversidade, COMUM-UFPI/CNPq. Atua como Coordenadora de Comunicação do CIATEN e como Superintendente de Comunicação da Universidade Federal do Piauí.