Certo dia me deu a mania de beber as águas do mar

Odorico Carvalho

Por Edwar de Alencar Castelo Branco

Estive em Picos, importante cidade que conurba uma extensa região urbana no centro-sul do estado do Piauí, no último final de semana, para participar do SELIPI – Seminário de literatura picoense. Trata-se de um evento longevo, realizado pela ALERP – Academia de Letras da região de Picos – que já está em sua vigésima primeira edição.

“Meu compromisso: falar da obra de Torquato Neto. Mas de repente deu-se uma magia” – Edwar Castelo Branco

Meu compromisso: falar da obra de Torquato Neto, autor homenageado na edição do SELIPI deste ano. Fui, como sempre, entusiasmado com a possibilidade de, mais uma vez, falar sobre a inesgotável obra de um poeta cuja potência existencial está na base mais fundamental de minha carreira acadêmica.

Ao adentrar ao auditório da ALERP fui recepcionado pelo cronista Ozildo Batista, pelo poeta Vilebaldo Rocha – também homenageado do ano – e pelo cronista e atual presidente da ALERP, Francisco de Assis Sousa.

Até aí, tudo transcorreu de maneira protocolar: uma mesa de honra, discursos de boas-vindas e outros protocolos comuns a eventos como aquele. Tudo, até esse momento, se resumia à antiga paixão pela poética torquateana, a qual eu guardo em um lugar escondido e fundo dentro de mim e que rebuliçara, mais uma vez, para a exibir ao público. Mas de repente deu-se uma magia: um violeiro – Barrazul – singrou num mundo verdadeiro das coisas de mentira e remexeu antigas memórias de mim. O poeta Vilebaldo, microfone em punho, recitou o Poema do Aviso Final, de Torquato Neto, fertilizando minhas lágrimas, as quais não pude segurar quando Odorico – um cantor que admiro a tantos anos – subiu ao palco e cantou incríveis baladas que traduzem a arte do Brasil profundo.  Os acontecimentos se sucediam num turbilhão. Eu potencializei todos os meus poros para receber os signos daquele instante. Num átimo, percebi que aquele era um momento singular e que era necessário retê-lo.

“Na tradição sertaneja do centro-sul piauiense, astuciar é sinônimo de estudar.”

Após a palestra, com incrível interação com o público, fizemos aquela tradicional sessão de fotos, de troca de afetos e afagos. Foi quando, então, cuidei de recolher alguns exemplares da obra daqueles incríveis menestréis. Pude recolher “Sessenta” – uma antologia composta por sessenta poemas que, por sua vez, sinalizam que o poeta Vilebaldo se tornou sexagenário –, a obra completa da cordelista Maria Ilza Bezerra, o último rebento de Francisco de Assis Sousa – Na Encosta de Terra Dura – e o parreshiasta livro Não Afobe a Política, Aguarde Carta, do cronista Ozildo Batista de Barros.

Nos pouco mais de trezentos quilômetros que separam Picos de Teresina eu dirigi ouvindo compulsivamente a Odorico. Repeti inúmeras vezes a balada Tão Só. Foi mesmo incrível perceber que aquele encontro me afetara profundamente. Ao chegar, fui ler aos menestréis do Brasil profundo. E mais uma vez me encontrei comigo mesmo. Ilza Bezerra retoma a tradição ancestral do cordel para chorar as agruras do tempo rei. Ao descrever o rio Guaribas, morada da deusa Vitória, ecoa um canto de lamento:

 

 

Ali não existem mais

Os lindos bancos de areia

A plantação da algaroba

Com muita força campeia

A água tornou-se escassa

E deixou a deusa alheia.

 

Lamento muito semelhante ao de Vilebaldo Rocha. Aliás, os menestréis do Brasil profundo têm uma consciência muito aguçada das questões ambientais. O rio Guaribas, núcleo central da identidade picoense, aparece muito na criação literária dos menestréis. Na de Vilebaldo, a exemplo de Ilza Bezerra, o lamento vem na frente:

 

Rio Guaribas!

Doce retrato amordaçado na lembrança

Hoje és mofo, esgoto, fratura exposta

O homem mija na solidão das tuas costas.

 

E esse homem, que mija nas costas do rio Guaribas, recebe de volta o maltrato: seca, o inóspito da vida, a agrura sertaneja, as vidas gemidas. A estupidez existencial da raça humana e o sofrimento do sertanejo é o tema central de Francisco de Assis Sousa:

           “Que pena que hoje não existe mais o pastorador de passarinhos nas plantações. Utilizam [perversamente] agrotóxicos nas sementes e o bicho que se atrever a buscar um caroço de milho ou de feijão morre. A matança só não é maior por conta do cheiro forte do inseticida, que faz com que os habitantes mais simpáticos da caatinga nem se interessem em se aproximar da plantação.”

Essa crítica social, expressa numa arte que lamenta a plurissecular estupidez humana, se acentua sem meias tintas na parhésia de Ozildo Batista. Ele nos ensina que, na tradição sertaneja do centro-sul piauiense, astuciar é sinônimo de estudar. E o sertanejo, com astúcia, vai construindo saídas naquilo que se poderia ver como beco sem saídas. Eis um exemplo: eleito vereador de Picos lá pelos anos 1980, o então jovem e sempre irreverente Ozildo esqueceu-se de comparecer à diplomação. Levou uma reprimenda do juiz eleitoral, mas saiu do cartório portando o diploma e gritando “quando não se pode beijar o juiz, beija-se a sua assinatura!”. O mesmo Ozildo que, após uma desilusão amorosa, construiu uma fortaleza no município de Sussuapara, na região conurbada de Picos, e a batizou de “Território independente do falecido amor”. Ali ele é o presidente, o rei, o senador, etc. O falecido amor é um território independente.

A história da literatura brasileira coloca “Ataliba, o vaqueiro”, de Francisco Gil Castelo Branco, e “Vida gemida em sambambaia”, de Fontes Ibiapina, como romances nucleares da economia estereotípica através da qual é significado o sertanejo piauiense. É possível que isso seja certeiro. Mas é possivelmente útil recolher os exemplares aqui tratados para se pensar como essa literatura matriz se espraiou na região de Picos. Esses menestréis de uma Brasil profundo são importantes recursos para compreendermos como chegamos, hoje, a ser isto que somos.

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Edwar de Alencar Castelo Branco – Universidade Federal do Piauí – UFPI e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.