Quando Aline Bei, 34 anos, começa a publicar seus escritos, logo é reconhecida no mundo da literatura. O primeiro romance, “O peso do pássaro morto” (2017), foi vencedor de dois prêmios – o Toca e o São Paulo de Literatura -, além de ter sido finalista do Prêmio Rio de Literatura. Publicado por uma editora jovem, o livro narra a vida de uma mulher sem nome, atravessada por traumas e angústias.

O tema segue na publicação posterior, “Pequena coreografia do adeus” (2021), livro que conta a história de Júlia, jovem que sonha ser escritora, mas vive sob a sombra de sofrimentos, abandonos e dores geradas pela convivência com a mãe.

Para a autora, falar de sentimentos tão conflitantes é necessário. “A gente vive numa sociedade que não permite que a dor saia para o lado de fora, atravesse a porta de casa”, afirma. “Por que falar disso? Mas por que não falar?” 

Aline Bei constrói seus livros em um estilo híbrido, misturando poesia e prosa, com inspiração em experiências vividas em outras expressões artísticas. Antes de enveredar pela escrita, ela atuou no teatro.

Para Revestrés, a escritora conta como a relação entre literatura e teatro contribui com seu trabalho. “A escrita e o teatro são muito parceiros, sempre foram”, aponta. E defende o papel do corpo no texto: “Para mim, a atividade da escrita não é intelectual, por mais que carregue muita coisa de referências e estudos, ela é uma investigação de corpo tanto quanto é o teatro”.

Aline Bei | Foto: Maurício Pokemon

 

Revestrés: Você vem do teatro. Como é migrar para a escrita e colocar todas as experiências dessas duas artes no texto?

Aline Bei: É um trânsito em que a gente não tem muita noção do lugar onde as coisas se partem e confluem. É quase como se eu nunca tivesse saído do teatro, de alguma forma. Acho que a escrita e o teatro são muito parceiros, sempre foram. O ator escreve também, de alguma forma: escreve o corpo no espaço e toma aquelas palavras para si, que é um tipo de escrita. E o primeiro gesto de escrita é ser leitor. A gente é leitor e, de repente, aquilo começa a tomar nosso corpo e a gente tem vontade de colocar no mundo nossas próprias palavras, despertadas pelo que a gente lê. Então, são profissões irmanadas, todas as artes são. O mais legal seria se a gente pudesse fazer um pouco de tudo. Acredito muito nessa interdisciplinaridade das artes, uma pode ajudar a outra. 

Revestrés: Quando você começou a entender essa transição do teatro para a escrita, o que mudou no processo de pesquisa?

Aline Bei: Na verdade, muita coisa muda e muita coisa se mantém. É saber que mesmo que o corpo não seja o resultado final do trabalho, como é no teatro e na dança, ele move a pesquisa. Agora, o resultado final não é meu corpo, mas o corpo do texto. Mas isso não tira meu corpo do jogo e isso é o mais importante. Para mim, a atividade da escrita não é intelectual, por mais que carregue muita coisa de referências e estudos, ela é uma investigação de corpo tanto quanto é o teatro. E eu procuro manter isso o tempo todo.

Revestrés: A sua escrita mais híbrida, que mistura prosa e poesia, recebe essa influência? 

Aline Bei: Sim. O teatro me ajudou a entender “a folha” como um espaço criativo, muito mais do que como lugar ameaçador. A folha nunca me cobrou, por isso nunca senti bloqueio diante dela. Ela é mais um espaço para trazermos a nossa criação, a nossa narração. Eu vejo esse lugar do espaço como um elemento cúmplice na criatividade. E a gente tem que tirar um pouco do peso, que é só nosso, de escrita, como se a escrita fosse feita só pela cabeça. Você precisa se render. É muito mais uma escuta que um ato absolutamente teu.

Revestrés: Quando a escrita passou a fazer parte da sua vida?

Aline Bei: Tenho escrito desde que entrei na Faculdade de Letras, em 2008, e a escrita não saiu mais da minha vida. E sou a mesma pessoa que escrevia lá, só que agora mais amadurecida, com algumas coisas que perdi e outras que ganhei no percurso. Um fator determinante durante esse processo foi ter conhecido Marcelino Freire, em 2015, e ter feito a oficina de escrita dele. Formalmente, nunca tinha colocado meu texto na roda, entre escritores que também estavam escrevendo, achava que não podia escrever assim, que não era permitido. Achava que, na oficina, as pessoas iam me dizer: “Olha, você tem que decidir se é prosa, se é uma poesia”, e eu não queria essa indagação. Mas quando conheci o Marcelino, percebi que isso jamais aconteceria ao lado dele, que é um artista que acolhe a investigação. E foi exatamente isso. Comecei a ganhar consciência da minha própria escrita e decidi escrever uma história mais longa.

É sempre bom estar no coletivo, se envolver em clube de leitura, ter seus pares, fazer saraus. Faça acontecer, crie seu movimento, vá encontrando seu caminho. 

Revestrés: O Peso do Pássaro Morto (2017) é seu livro de estreia. Com ele, você ganhou o Prêmio Toca, o Prêmio São Paulo de Literatura e foi finalista do Prêmio Rio de Literatura. Como você recebeu tudo isso logo no primeiro romance?

Aline Bei: Quando o Pássaro chega ao prêmio São Paulo, ele já tinha ganhado o prêmio Toca, que é da oficina do Marcelino, e que fez o livro ser publicado. Isso me deu uma confiança muito grande. Comecei a vender o livro, encontrar meus leitores e leitoras e, quando o prêmio São Paulo de Literatura veio, ele também acolheu esses anos todos de trabalho. É importante dizer que é um prêmio que cuidava dos livros estreantes, de autores até 40 anos. Esses prêmios acolhem pessoas que estão começando e é um dinheiro muito bom para que você mantenha seu foco no trabalho de escrita. E tem o reconhecimento, né? Muitas portas se abriram, e você começa a trilhar uma carreira com passos mais firmes, algo que é tão difícil, na escrita, na arte.  

Aline Bei | Foto: Maurício Pokemon

Revestrés: Que dicas você daria para os escritores que estão começando no caminho da escrita?

Aline Bei: Cada artista tem uma história para contar em relação a suas investigações, mas sinto que o mais importante é a insistência, a gente se manter teimoso. Marcelino fala muito dessa teimosia que a gente tem que ter como artista, porque as portas não vão estar abertas e, às vezes, tudo demora a acontecer e a gente precisa acreditar no nosso trabalho. Não é ter arrogância, mas confiar no que está fazendo, na pesquisa, se apegar a isso e ter essa confiança em si. Financeiramente também demora, porque a arte não trabalha na lógica do capital. Você tem que lutar e resistir. Sempre digo para fazerem oficina de escrita, porque você conhece pessoas, outros escritores e outras vivências. É sempre bom estar no coletivo, se envolver em clube de leitura, ter sua turma, seus pares, fazer saraus, fazer movimento. Faça acontecer também, crie seu movimento, vá encontrando seu caminho da maneira que for possível. 

Revestrés: Seu primeiro livro teve uma adaptação para teatro. O segundo livro também está passando por esse processo. Como é ver suas obras no palco?

Aline Bei: Como venho do teatro, é muito emocionante ver o texto no palco. Quando entrei em contato com meu texto pelo corpo de Helena Cerello, que fez o monólogo do Pássaro Morto, senti  um despreendimento, já nem me lembro que o texto é meu, porque o texto “é” dela. O quanto que o ator também pega para si o texto que ele está encenando. Eu consigo desfrutar daquilo como se fosse uma coisa à parte.

Revestrés: Você utiliza as redes sociais para se aproximar de quem vai ler seus escritos. Qual a importância desse espaço para chegar aos leitores?

Aline Bei: Os leitores podem ser ativistas dos livros que amam, não só com resenhas publicadas na internet que ajudam o livro a fluir e encontrar novos leitores, mas também apoiando o trabalho antes dele nascer, ser parte desse nascimento. Isso é maravilhoso! Eu fico até arrepiada. Hoje a gente tem o feedback do livro em um segundo, tudo pipoca de forma muito rápida, intensa. Quando publiquei o Pássaro, comecei a mandar mensagens para os leitores, as coisas começaram a acontecer, e até hoje faço isso com A Pequena de uma forma um pouco diferente, mais leve, porque os livros já caminham sozinhos. Mas adoro estar perto das pessoas que me leem, conversar, trocar, escutar. Acredito muito nessa proximidade das redes.

Sinto nas escritoras o desejo de contar as nossas histórias, falar do nosso ponto de vista, ressignificar papéis. É um exercício político e poético.

Revestrés: Como acontece essa troca?

Aline Bei: É também uma troca de histórias porque é sobre o quanto o livro te move, te encontra nas suas memórias, na sua intimidade. Costumo ouvir histórias bonitas a respeito do que o livro despertou e acessou de lugares que estavam esquecidos. A partir do livro, você começa a elaborar coisas que talvez, sem ele, demoraria um pouco mais. Acredito muito nesse tipo de “cura”, digamos assim, e o quanto a literatura também pode nos acolher nas nossas dores e ressignificar muita coisa.

Revestrés: Qual o papel das mulheres nas suas narrativas?

Aline Bei: Tenho escrito histórias que têm acontecido dentro do corpo da mulher, diante de um corpo de mulher desde sempre, e tenho percebido, cada vez mais, que essa é a minha obsessão, é o lugar de onde narro, é esse corpo de uma mulher no mundo e todas as fragmentações, silêncios, violências e potências que podem nascer a partir dessa investigação. Sinto nas minhas companheiras de cena, digamos assim, nas escritoras que temos hoje, essa cumplicidade, esse desejo de contar as nossas histórias, porque por muito tempo tem sido isso: as mulheres escrevem, mas guardam o que escrevem. Tomar esse corpo de volta, contar essas histórias do nosso ponto de vista, ressignificar esses papéis que têm sido colocados pra gente por tanto tempo, é um exercício político e poético simultâneo que tem tomado nossa atenção como escritoras hoje no Brasil. E é uma fase muito bonita porque não são só escritoras, mas editoras muito fortes que estão surgindo. Eu sou editada só por mulheres, e sempre fui, acho isso poderoso também.

A gente vive numa sociedade que não permite que a dor atravesse a porta de casa. Guardamos nossas sombras, choros, não levamos isso a público. Por que falar disso? Mas por que não falar?

Revestrés: Você acredita que, hoje, há um espaço mais fortalecido para as mulheres escritoras?

Aline Bei: Acredito que sim. É claro que é um longo processo histórico e nada se resolve de um dia para o outro, mas estamos caminhando em uma direção muito bonita. Nunca houve tantas mulheres publicando por grandes editoras, sendo editadas por mulheres, ganhando prêmios. A atenção hoje para a diversidade está se acentuando porque também a sociedade tem cobrado isso. Quando eu fazia sarau, por exemplo, era quase sempre uma das únicas mulheres. Hoje você vai em um sarau, tem poetas maravilhosas o tempo todo em cena, com o protagonismo da palavra, trazendo coisas fortes. Há uma mudança em curso, que está acontecendo, e é muito bom viver e nascer nesse período.

Revestrés: A protagonista de O Pássaro Morto não tem nome. Isso estaria de alguma forma relacionado à questão de um não-lugar da mulher na sociedade?

Aline Bei: Essa leitura é uma camada interessante que você traz, essa questão do não-lugar. Costumo batizar meus personagens de forma espontânea. O nome surge – assim como o título-, muita coisa surge no processo. Então eu estava esperando o nome da minha protagonista chegar e, quando já estava quase no meio do livro, o nome não tinha chegado e entendi que era mais potente deixar ela anônima, porque é uma mulher que tá “quase”. Imagino sempre minhas histórias no palco, e essa protagonista nunca se virou para a plateia. Ela é sempre um vulto, uma sombra do que poderia ter sido. A gente não tem o rosto dela. Se você me perguntar como ela é, eu não sei. Ela não me mostra quem ela é. Esse anonimato também dialoga com a solidão profunda dessa mulher e com o fato de que ela carrega muitas outras mulheres nesse exercício de perdas que sofre. Essa questão do anonimato preservado diante da violência, sem que saibamos nunca de fato quem são essas mulheres, como a gente pode ajudá-las, eu queria também dialogar com isso, com esse lado político, mas também com o lado solitário dessa mulher que nunca foi chamada. É quase como se isso explicasse o fato dela guardar um silêncio por tanto tempo, ser invisibilizada e nunca vista de verdade. Como ela pode falar, se seu corpo ainda não chegou no espaço?

Revestrés: Você fala de dores e traumas e o quanto essas questões se relacionam com a vida das mulheres. Por que tocar nesses assuntos?

Aline Bei: Quando você está contando uma história, vai tocar em muitas coisas. Os sentimentos são naturais, a dor é tão natural quanto a alegria, os ciúmes, a dança, quanto tudo. Quando você escreve, as coisas afloram. Mas a gente vive numa sociedade que não permite que a dor saia para o lado de fora, atravesse a porta de casa. Guardamos nossas sombras, nossos choros, não podemos levar isso ao público. Por que falar disso? Mas por que não falar disso, que é tão natural como qualquer outra coisa? Quando a gente está retratando uma história,  estamos trazendo complexidades, e os sentimentos vão surgir e são muito bem-vindos. A gente precisa adentrar as sombras, inclusive para trazer a luz.

***