A década de 1970 marcou um boom: artistas do Brasil interpretando canções em inglês. Grupos de cantores desafiavam-se no idioma estrangeiro para se inserir no mercado fonográfico, que tinha como grande referência músicas estrangeiras tocadas nas novelas. Era a indústria cultural em língua inglesa se impondo e disseminando influências. E o inglês dando maior visibilidade a artistas em gravadoras e meios de comunicação.  

Passados mais de 50 anos, com globalização instalada, diminuição de distâncias e transformações nas formas de produção e distribuição, compor em inglês ganhou muitos significados, para além das questões de mercado, que permanecem. Artistas piauienses têm buscado espaço para suas composições e querem ecoar vivências, paixões e referências. Reivindicam, assim, o direito de fazê-lo. E por que não poderiam cantar em inglês? 

“A lição que aprendi é que as pessoas querem a verdade e originalidade do artista. Ninguém quer ouvir a segunda versão de um artista que já existe – Nadedja

Ouvinte e estudioso do cenário musical no Piauí, produtor e apresentador do programa Sonória, na plataforma SoundCloud, Manoel Soares recusa que o artista precise se enquadrar em um tipo de produção em específico e defende que, antes de tudo, ele seja livre para se expressar – na sua língua materna ou em outro idioma. “Não existe uma maneira correta, um modelo único de se expressar. Se o artista se sente bem daquela forma, quem sabe como deve se expressar é ele”, diz. 

Nadedja: “Vi que se eu escrevia frases em português, também poderia explorar o inglês”.

Júlio Baros, 31 anos, da banda de metal Corona Nimbus, formada em 2019, reconhece na língua inglesa influências que vêm da sua infância. “Comecei  a apreciar  música aos dez anos, quando chegaram pra mim Nevermind, do Nirvana; Californication, do Red Hot e Appetite for Destruction, do Guns N’ Roses. Cerca de três ou quatro anos depois comecei a tocar violão. Todo meu histórico foi envolvido com o inglês”, conta. 

Após um intercâmbio nos Estados Unidos, curiosa por outras culturas e línguas, a piauiense Nadedja foi morar em Newcastle, Nordeste da Inglaterra. Aos 28 anos e radicada no Reino Unido, ela carrega o inglês na vida e carreira. O contato com composição musical começou por volta dos 13 anos, quando escritos em seu diário ganharam melodias. “Vi que se eu escrevia frases em português, também poderia explorar o inglês. Na época eu não entendia a língua o suficiente, tinha muitos erros, mas estava me divertindo e era legal, era um processo criativo”, conta a artista. 

Em Teresina, Fryer, nome artístico de Érico Ferry, 27 anos, se lança como artista multifacetado, que circula nas artes plásticas, literatura e música. Desde os nove anos ele exercita violão, guitarra, baixo e outros instrumentos. Mas conta que foi aos 19, quando começou a tocar piano, que voltou sua atenção para a música. Em seu primeiro trabalho, o disco The Moth – Before the Darkness, lançado em julho de 2021, das sete faixas, cinco são em inglês e duas em português. O disco foi gravado no estúdio ForestLAB, em Petrópolis (RJ), que, em meio à era digital, tem atraído artistas por trabalhar com gravações analógicas, feitas em rolo de fita e com equipamentos construídos pelo engenheiro eletrônico e produtor musical, Lisciel Franco, 40 anos, dono do estúdio. Fryer conta que preferiu a gravação analógica em busca da fidelidade ao que foi tocado e porque queria “algo que remetesse a uma sonoridade vintage, como essência de um produto independente e conceitual”.   

Fryer: “Esse é um trabalho sem fins mercadológicos, é simplesmente algo que tentei fazer com toda a sinceridade”.

Segundo o artista, cantar em dois idiomas é uma forma de quebrar tabus. “Muita gente aconselha a gravar tudo em português ou tudo em inglês, por fins de ‘mercado’ – não suporto essa expressão. E esse é um trabalho sem fins mercadológicos, é simplesmente algo que tentei fazer com toda a sinceridade”, diz. “As músicas em que a crítica era direcionada a coisas do Brasil eu preferia que fossem em português. As outras foram escritas com estrutura já pensada em inglês, por serem temas mais universais e pela sensação que eu queria passar”. 

A Corona Nimbus segue a mesma tendência. No disco que leva o nome da banda, das 11 faixas, oito são canções em inglês. Júlio afirma que seu trabalho traz referências de bandas piauienses que já produziam em língua inglesa, como Avalon, Anno Zero e Megahertz. Na Corona Nimbus os idealizadores buscam diversidade de sons e uma identidade própria. “Trabalho 24 horas com música e ouço desde música de igreja até metal pesado, swingueira, forró, sertanejo… Eu adoro música, principalmente se bem tocada”, afirma Júlio. 

Jacqueline Dourado, professora de Jornalismo da Ufpi e estudiosa de indústrias culturais, lembra que a língua portuguesa é considerada complicada para o mercado internacional, enquanto a língua inglesa tem maior aceitação. Em paralelo a isso, “temos hoje uma geração que já tem intimidade com o inglês, que já ‘pensa’ em inglês, foi socializada com a língua inglesa, seja por meio da escola ou pela capacidade que foram adquirindo com o acesso a músicas e filmes em inglês”. Ela afirma: “Tem toda uma produção cultural em inglês que, hoje, está ainda mais ao alcance, com as plataformas digitais”.  

 Não existe uma maneira correta, um modelo único de se expressar. Se o artista se sente bem daquela forma, quem sabe como deve se expressar é ele – Manoel Soares.

Transitando entre pop alternativo, música latina, folk e o indie pop, Nadedja conta que o primeiro contato que teve com seus artistas favoritos foi através de discos de seus pais, em inglês. E compartilha o que considera mais importante sobre música: “A lição que aprendi é que as pessoas, tanto público quanto a indústria musical, querem a verdade e originalidade do artista. Ninguém quer ouvir a segunda versão de um artista que já existe. Quanto mais você se aproxima daquilo que você é, melhor para sua música”, aposta a autora de Transient, álbum lançado em outubro de 2021, com quatro faixas. Para a construção de uma carreira no exterior, Nadedja procura deixar claro ao público que é uma cantora brasileira que compõe em inglês, com influências naturais do seu país de origem. Mas alerta: “Nunca pensei: ‘sou brasileira e preciso escrever ou cantar músicas que lembrem meu país’. Eu queria apenas que minhas músicas fossem naturalmente o que são”.   

É como Manoel Soares a percebe. Ele não revela preocupação em discutir origem e idioma dos artistas. “Quando ouço Nadedja não penso: ‘é uma artista do Piauí cantando em inglês’. Penso: é uma artista fazendo a música dela”. 

Influências  e projeções 

Em um post de Instagram Fryer definiu seu disco como “curto e esquisito”. Ele diz que uma das músicas de seu álbum, “Sinal de Outubro”, faz uma reflexão sobre um governo obscuro na política e se posiciona como “anti-Bolsonazi”. “Acredito que a arte sempre deve ter espaço para discussões sociais e políticas. Quem acredita o contrário provavelmente não está ciente do papel da arte ao longo de diversos momentos críticos e revoluções na história da humanidade”, afirma. 

Corona Nimbus: regionalismo e questões sociais. “O lance do inglês ajudou a gente a sair em revistas na gringa” – Júlio Baros.

Por seu lado, a Corona Nimbus foca no regionalismo como caminho para explorar questões sociais. O instrumental Flying Lamp (Lampião Voador) é um exemplo. “O Sepultura tem muito disso. O nosso metal é com parte regional, bem Nordeste”, afirma Júlio. Ele e seu companheiro de banda, Júnior Vieira, dizem ter influências de Black Sabbath, Nirvana, Baroness e, entre as brasileiras, Sepultura, Scalene, Super Combo e Molho Negro 

Já Nadedja busca inspiração em Norah Jones, Sara Bareilles, Rosália, Céu e Maggie Rogers, e na voz masculina de Tonny Petty. Com Fryer esse processo vai variando. Em seu primeiro disco, além de David Bowie, tem influências de Bauhaus e Nick Cave. “Já estou mudando de novo, não gosto de me repetir. Uma das minhas maiores influências no momento está no Nine Inch Nails e no trabalho de Trent Reznor”.  

Com influências diversificadas, os artistas atuam num mercado da música que apresentou crescimento mundial de 7,4% em 2020, mesmo com as restrições da pandemia, mas com a expansão dos serviços de streaming no país. Os dados são da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (Ifpi). O Brasil está em 11º lugar entre os mercados.   

No Piauí, Manoel Soares acredita ser precipitado afirmar a existência de um mercado voltado à produção internacional. Antes disso, considera que ainda falta base à construção de um mercado fonográfico local, em que os artistas vendam sua obra para além dos serviços de streaming. “O streaming rentabiliza, mas é muito pouco”, salienta.  

O mercado da música apresentou crescimento mundial de 7,4% (2020), mesmo com as restrições da pandemia, mas com a expansão dos serviços de streaming.

Mais do que um mercado rentável, Jacqueline Dourado enxerga nas plataformas digitais a possibilidade de existência para artistas que, mais do que lucrativos, podem se enquadrar na ideia de diversificação e fragmentação. A estudiosa lembra o conceito de “cauda longa”, popularizado por Chris Anderson, para se referir à passagem de um mercado de massa para um de nichos. “Há um mercado subjacente, permitido pelas plataformas digitais, um modelo paralelo ao consumo de massa. Ou seja: dentro de um boom no consumo, vemos bolhas de outros tipos de consumos”. E conclui: “Se isso não proporciona um grande mercado consumidor, mostra que há outras ideias de produtos ou mercados”.  

Presente nas principais plataformas, Nadedja diz que criou uma rede de apoio no Reino Unido que contribui para que sua música seja tocada em lugares como BBC North East. “É a realização de um sonho, porque quando você chega no país não conhece ninguém, é muito louco você conseguir, até a ponto de poder colaborar com outros artistas, de gravar com produtores daqui, fazer shows”, diz. 

“Há um mercado subjacente, permitido pelas plataformas digitais. Se isso não proporciona um grande mercado consumidor, mostra que há outras ideias de produtos ou mercados – Jacqueline Dourado.

Em dois anos de Corona Nimbus, Júlio Baros se diz contente pelo trabalho que tem chegado a vários lugares, e elenca Reino Unido, Estados Unidos, França, Holanda – alcances permitidos pelos lançamentos via internet e redes de contatos com outros artistas. “O lance do inglês ajudou a gente a sair em revistas na gringa, tem muita matéria sobre a gente lá fora”, diz. Além disso, estiveram como semifinalistas do concurso EDP Lives Bands, que premia bandas vencedoras com uma apresentação no NOS ALIVE, em Lisboa, Portugal, um dos maiores festivais de música na Europa. 

Fryer também é otimista com o alcance obtido e considera que a repercussão do seu trabalho tem sido positiva para um produto 100% independente.   

Na expectativa de ganhar os palcos com menos restrições e mais aglomerações após os tempos pandêmicos, os artistas seguem investindo em seus trabalhos. Nadedja prepara novas músicas para lançar EP em 2022, Fryer planeja novos singles e a Corona Nimbus programa gravações de novo álbum. São vozes “made in Piauí“ querendo ganhar o mundo. E por que não? 

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Publicado na Revestrés#50. 

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