Ainda com grades, proteções de ferro pesado e paredes construídas com pedras robustas há 165 anos, um casarão antes utilizado como cadeia pública no centro de Campo Maior, no Piauí, a cerca de 80 quilômetros de Teresina, tem hoje seus corredores ocupados por jovens e instrumentos de música erudita. Pelas salas por onde já passaram condenados, prisioneiros de conflitos, injustiçados e subversores, a passagem agora é livre para a música.

Os encontros de jovens ligados à igreja católica na cidade eram movidos por música e ações culturais pontuais. Aquele ponto de refúgio na rotina pedia um local fixo. Diante da falta de dinheiro para custear atividades culturais, Gean Medeiros conta que, além de buscar doações e recursos para compra de instrumentos, o grupo viu no prédio, construído em 1856 e que abrigou a chamada Cadeia Velha de Campo Maior, uma possibilidade de ocupação transformadora.

“Começamos a nos organizar em 2016. O primeiro engenheiro que veio aqui [no prédio] condenou tudo e disse: ‘é uma casa histórica e a gente não pode arrumar. Era mais barato vocês derrubarem’”. O grupo nem considerou essa possibilidade. Gean relembra que sempre circulou, nas conversas em família, nos papos das praças e no imaginário de Campo Maior, o quanto representou a Cadeia Velha para a cidade. As tentativas acabaram surtindo efeito e o edifício, então pertencente à prefeitura da cidade, foi cedido para a criação de um equipamento cultural para a juventude.

“Algumas pessoas que vieram na inauguração da reforma contavam do medo ao olhar as grades. Aqui já foi local de tortura, onde se ouvia e sabia do sofrimento das pessoas. Muita gente ligada à igreja nos conta histórias. Isso só nos fez perceber a importância de ocuparmos esse espaço com cultura”, conta Gean. Alguns registros históricos sobre a antiga prisão foram publicados no Esboço Histórico da Cadeia Velha de Campo Maior no Século XIX, assinado pelo pesquisador Celso Gonçalves Chaves.

Nossa conversa com Gean aconteceu em um fim de tarde, na calçada onde hoje funciona o Lar da Juventude. Entre uma história e outra, o entrevistado cumprimentava conhecidos e alunos que passavam pela rua. De dentro das salas, ouvíamos os ensaios das aulas instrumentais de sopro, cordas e as orientações de professores. Em uma das salas, que preserva parte da arquitetura original, o professor Igor Carvalho dedilhava o violão, embalado por Águas de Março, de Tom Jobim. Ex-aluno do próprio Lar da Juventude nas turmas de instrumentos de sopro, ele diz, com sorriso no rosto, que o compromisso é “trocar o semblante mórbido e alegrar a casa com música”.

Gean enumera orgulhoso a recente aquisição de trombones, trompetes, saxofones, bombardinos, baterias, violões, violinos e demais instrumentos utilizados nas aulas e pela Banda XV de Agosto, formada por alunos do projeto. Atualmente, o Lar da Juventude contabiliza cerca de 150 estudantes, entre crianças e jovens de até 25 anos, matriculados nas aulas gratuitas que ocorrem semanalmente.

Esse local já registrou histórias de tristeza e hoje é lugar de alegria e onde podemos impactar a vida dos jovens” – Lucas Chaves, professor.

Lucas Chaves aprendeu a tocar violino ainda na adolescência. Agora, como professor no projeto, diz que a música representa um universo de possibilidades, expressões e emoções. Com seus alunos, ele trabalha na conformação da primeira orquestra de violinos da cidade. “Nossa responsabilidade é grande. Esse local já registrou histórias de tristeza e hoje é lugar de alegria e onde podemos impactar na vida dos jovens”.

Alice Vieira, aluna de bombardino, reconhece a responsabilidade dos atuais aprendizes no sentido de incentivar futuras gerações de músicos. “Para nós, é um sonho realizado e uma transformação que serve para toda a cidade. Podemos ensinar que, por meio da cultura, é possível mudar, e outras crianças e jovens também podem participar”.

O Lar da Juventude foi contemplado na Lei Aldir Blanc, via Secretaria de Cultura do Estado do Piauí (Secult), por meio do Sistema de Incentivo Estadual à Cultura (SIEC). De acordo com informações da Secult, os recursos auxiliaram na aquisição de instrumentos e contratação de professores. Gean Medeiros confirma que os recursos são importantes para dar novos passos, ampliar iniciativas e remunerar os professores que eram, no início, todos voluntários. “Estamos aqui desde o começo e todos sabemos da importância de sermos a primeira e única escola em Campo Maior que oferta aulas de instrumentos clássicos”.

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Publicado em Revestrés#49.

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