Deixei o ano passado esvair sem que conseguisse escrever sequer uma linha em homenagem a um dos mais esplêndidos músicos deste país: Edu Lobo. Diante de artistas muito grandiosos, encolho-me bem aos moldes de mineira tímida e desconfiada. Trata-se de certo pudor comportamental, existencial, seja lá o que for, receio tocar em mitos. Passei cerca de quatro meses ouvindo o último CD de Chico Buarque até que ele adentrasse inteiramente por todos os meus poros, daí então tomei coragem e celebrei numa crônica seus setenta anos. Milton Nascimento é outra entidade, entre os septuagenários que ocupa minha alma faz tempo, com “Milagre dos peixes”, “Minas”, “Clube da esquina” e “Sentinela”. Vou prolongando as audições, adiando o fatídico momento do embate com o deserto da página em branco.
Como é manhã de julho com céu muito azul e sol quente, ouço as crianças do prédio vizinho fazendo mil arruaças nesse momento “refrescante” de férias. Ponho para tocar “O grande circo místico”, obra prima da parceria Edu Lobo e Chico Buarque e tento, ao menos em minha imaginação, apaziguá-las com um banho de lirismo. Começo por “A história de Lily Braun”, a gravação definitiva de Gal Costa que embalou boa parte de meus sonhos adolescentes: “Como num romance/O homem dos meus sonhos/Me apareceu no dancing/Era mais um/Só que num relance/Os seus olhos me chuparam/feito um zoom”. Colocava na vitrola essa faixa para tocar inúmeras vezes e ficava tentando reproduzir da melhor maneira possível os agudos afinados e extensos que Gal brilhantemente ia entoando no final da canção. Certamente é uma aula de música ouvi-la acompanhada pela pulsante Big Band. Não sei qual impulso motivou décadas após este primeiro registro, a regravação quase simultânea desta música pelas cantoras Maria Gadú, Maria Rita e Mônica Salmaso. Há músicas que subitamente readquirem valor num revival cult, vá lá entender. Cada uma com sua leitura própria, mas que a meu ver ficam aquém da versão original. Parece-me que faltam nas novas versões o brilho e o vigor que Gal conseguiu alcançar, possivelmente devido ao fato de que sua gravação fazia parte de um amplo contexto, ou seja, a história do álbum “O grande circo místico”.
O disco “O grande circo místico” evolui numa espécie de encadeamento temático que nos transporta para o comovente universo do circo com seus personagens belos e sedutores (Ciranda da bailarina/ A história de Lily Braun), assustadores e trágicos (A bela e a fera), cômicos e tristes (Valsa dos clowns). O tênue fio da vida sustentado pelo sonho dos passos perfeitos da bailarina e pela máscara feliz do palhaço, que no escuro da cena esconde suas lágrimas de neblina, ai Gelsomina Giulietta: “Não/Não sei se é um truque banal/Se um invisível cordão/Sustenta a vida real”. A vida com suas chegadas e partidas que deixam a ânima do artista e do público borbulhando de dor, alegria, prazer e saudade. Meio tontos e lambuzados de cores, poeiras, brilhos e suores, na bagagem da luta infinda prosseguem os artistas-malabaristas: “Voar, fugir/Como o rei dos ciganos/Quando junta os cobres seus/Chorar, ganir/Como o mais pobre dos pobres/Dos pobres dos plebeus/Ir deixando a pele em cada palco/e não olhar pra trás/E nem jamais/jamais dizer/Adeus”.
A sabedoria e humildade do jovem Edu Lobo o levaram, na década de sessenta, a deixar os palcos e os apelos da grande indústria de criação de ídolos. Ele saiu silenciosamente de cena no momento em que era exaltado como o galã compositor bicampeão na era dos festivais.
A parceria entre Edu Lobo e Chico Buarque não se esgota em “O grande circo místico”. Continua em outras peças como “O corsário do Rei”, “Dança da meia-lua” e “Cambaio”, além de uma profusão de composições sublimes como “Choro bandido”, “Valsa Brasileira” e “Moto contínuo”.
Nos tempos de agora, intensamente e brutalmente o sucesso, a fama e o estrelato destituído de qualquer filigrana de talento consistem no imperativo da ordem capitalista do show business. A sabedoria e humildade do jovem Edu Lobo o levaram na década de sessenta a deixar os palcos e os apelos da grande indústria de criação de ídolos. Ele saiu silenciosamente de cena no momento em que era exaltado como o galã compositor bicampeão na era dos festivais. Edu não se deslumbrou com o sucesso e recolheu-se para estudar música profundamente, garantiu assim a custo de muita dedicação e talento, domínio pleno dos quesitos harmonia, melodia e arranjo instrumental. Em depoimento registrado na recém-lançada biografia escrita por Eric Nepomuceno, o compositor revela: “… eu tinha grande dificuldade na hora de explicar para os arranjadores o que esperava. No meu primeiro disco, por exemplo, eu não conseguia dizer para o Luiz Eça o que eu queria com a música. Como não sabia ler partituras, acabava usando palavras absurdas. Tentava inventar um dialeto que fosse compreensível. Dizia, por exemplo: “Luizinho, eu queria que você começasse com um acorde mais gordo, e depois ir afinando…”. Ora, ninguém entende isso. Eu ficava com pena dele e com vergonha de mim. Então, aprender a ler música mudou minha vida. Para um músico, isso é como aprender a ler palavras. Tenho orgulho da minha coleção de partituras – capto tudo que tenho de captar, não me distraio, não perco o rumo”.
Percorrer a fundo a obra deste engenhoso músico demanda entrega e sobretudo, apuração auditiva. Edu Lobo é um ourives da música que lapida suas preciosidades com a precisão de um ourives. “Limite das águas”, lançado ainda no formato LP em 1976, é uma obra impecável do começo ao fim. Junto com Maurício Maestro, Edu divide a responsabilidade pelos arranjos e orquestração, enquanto a regência fica por conta do maestro Lindolfo Gaia. “Considerando” é simplesmente uma obra-prima com os versos densos e de feição confessional de Capinam: “Considerando o naufrágio/A rotina dos barcos/Eu me achei no direito/De ao menos, pedir/Tempo claro pro meu rumo/E nos temporais da febre/De quem fuma, de quem bebe/As longas noites vazias// Eu sou o homem comum/Eu sou a mulher da rua/O vagabundo poeta/O navegante da lua”.
Aos 33 anos, Edu Lobo demonstrava o amadurecimento musical e existencial adquirido ao longo do percurso, tanto que cinco anos depois, gravou com produção e direção de Aloysio de Oliveira um disco monumental, ao lado de nada menos que Tom Jobim. Edu dialoga com o refinamento de Tom e suas concepções de improvisos leves. O casamento musical desses dois estupendos músicos resulta numa das obras referenciais da história de nosso cancioneiro nacional. O belo timbre de Edu, que canta muitíssimo bem, soa bonito demais em contraste com o registro grave da voz de Tom. O encontro destes dois pilares da música moderna brasileira marcou uma sorte de união entre professor e aluno, num clima de cordialidade e admiração mútua: “De todos os arquitetos da música que conheço, Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim é, sem dúvida, o de traço mais amplo e perfeito. Dele surgem projetos sólidos, feitos para abrigar os corações do mundo”. “O Edu é um compositor fabuloso, formidável. É, extraordinário, no Edu, essa brasilidade dele. A gente vê uma pessoa empenhada em construir uma obra”.
*Daniela Aragão é cantora e pesquisadora musical
(Publicado na edição #21)