“É um dilema muito grande discutir quarentena dentro de uma favela, pois entre se prevenir e ter que garantir o sustento da família muitas pessoas acabam correndo o risco para manter sua dignidade”. O relato de Neila Oliveira, jornalista do Voz das Comunidades, do Rio de Janeiro, coloca no centro o desafio que veículos de comunicação comunitária vivenciam durante o período de pandemia onde uma das principais recomendações, a de “fique em casa”, revela problemas mais profundos enfrentados no dia a dia de comunidades muito antes da disseminação da Covid-19.  

É um dilema discutir quarentena dentro de uma favela, pois entre se prevenir e ter que garantir o sustento da família, muitas pessoas acabam correndo o risco para manter sua dignidade” – Neila Oliveira, Voz das Comunidades.

A grande quantidade de informações em circulação nos últimos meses exigiu dos veículos de comunicação comunitária estratégias para contextualizar a crise, ter a atenção do público e ressaltar as medidas de saúde coletiva, esbarrando na enorme desigualdade social e nos sintomas dos adoecimentos sociais do país. Ironicamente, é na palavra proximidade que esse processo se torna mais efetivo. 

Construindo comunicação através da escuta de acontecimentos em diversos territórios e bairros da periferia de Teresina, o coletivo Ocorre Diário, formado por jovens, lideranças comunitárias, estudantes e pesquisadores de áreas como história, educação, comunicação, arquitetura, dentre outros, atuando em conjunto desde meados de 2015, apostou em utilizar as redes sociais para abordar questões da cultura popular, educação, movimentos sociais e violências sofridas por grupos à margem das políticas públicas. O grupo iniciou o projeto “O corre da quarentena”, com a realização de lives temáticas no Instagram para tratar desses assuntos e não apenas dos efeitos diretos da pandemia Segundo Maria Luísa Mendes, jornalista do coletivo, o momento não é de disputa por narrativas, mas de “olhar por várias formas os territórios e apresentar uma pluralidade de outros temas importantes”.  

O esforço para transmitir informações mais próximas da realidade comunitária também mobilizou o coletivo Fala Dirceu, atuante na região sudeste de Teresina desde 2018. O grupo criado pelos jovens Leonardo Mascarenhas e Vitória Cruz reúne atualmente oito, pessoas além de outros colaboradores, com idade entre 18 e 29 anos autofinanciando as próprias atividades. Mesmo não sendo comunicadores por formação acadêmica, eles atualizam redes sociais, canal de vídeos, produzem documentários, realizam eventos, apoiam e divulgam trabalhos de artistas residentes no grande Dirceu, região mais populosa da capital piauiense com mais de 200 mil habitantes.   

 

Leonardo explica que não há como tratar somente da pandemia quando muitos outros problemas afetam o cotidiano das pessoas. Ele cita como exemplo uma campanha de solidariedade a meninas que já sofreram com assédio sexual. “Nós começamos uma campanha de dedicar nossos espaços para dizer que elas não estão sozinhas, que as meninas têm posição dentro da sociedade, pois são pessoas que significam muito pra gente”. Para ele, é preciso dizer às pessoas que fiquem em casa, cuidem da saúde, mas sabendo o que isso pode significar na realidade periférica.  

 

Estratégias e solidariedade 

O período tem demonstrado um inegável protagonismo da internet abrigando plataformas de comunicação e de distribuição de informações a um grande número de pessoas. Mas onde a cidadania digital não chega a todos, outros meios entram em cena e campanhas de solidariedade se multiplicam e enfrentam as adversidades presentes no cotidiano da população mais empobrecida e vulnerável das cidades.   

 

Neila Oliveira conta que, em mais de 15 anos de existência do Voz das Comunidades no Rio de Janeiro, a equipe tem se adequado às novas tecnologias e plataformas. Mesmo assim, no início da disseminação da Covid-19 a equipe espalhou faixas pela comunidade, colocou carros de som com informações sobre as medidas de prevenção, atenção aos grupos de riscos e suporte jurídico sobre os programas de assistência do Estado. “Tudo isso faz parte do processo de desenvolvimento, permitindo uma inovação e adaptação aos novos processos de fazer jornalismo e na veiculação das notícias. A revolução da internet trouxe novos desafios e mudanças proporcionando imensa contribuição para o crescimento da comunidade e o fortalecimento dos direitos sociais”, conta. 

O Voz das Comunidades entrou também no combate à desinformação. Segundo Neila, o grupo conseguiu financiamento do Consulado Geral dos Estados Unidos no Rio de Janeiro e foi criado um aplicativo onde são atualizados diariamente os dados sobre a pandemia, com informações em tempo real das comunidades e notícias do Voz, das quais a equipe garante a confiabilidade.  

As fontes de notícias desses veículos estão do lado, dentro das próprias residências dos comunicadores ou se reúnem em grupos. De acordo com Paulo Oliveira, é no “boca a boca” que a comunicação do Fala Dirceu se populariza, pois “a fonte é nosso vizinho e todos os dias as pessoas nos dizem que nossos projetos e informações estão ajudando na questão da quarentena e elas nos procuram para isso”. Entre lives e produção de notícias, o whatsapp da equipe tem lotado de pedidos por cestas básicas de alimentação. Em uma das campanhas que o grupo ajudou foram arrecadadas 300 cestas básicas para pessoas da região sudeste.  

A campanha “Pandemia com empatia”, do Voz das Comunidades, buscou apoio de outros coletivos para aumentar o número de doações e atender a alta demanda, contando com um meio próprio de gestão de crise, demonstrando como os coletivos ocupam o espaço de ineficiência da atuação pública do Estado. “As doações estão sendo distribuídas em várias partes da comunidade e principalmente atendendo famílias mais vulneráveis. Temos também o Gabinete de Crise, que foi criado em parceria com o Coletivo Papo Reto e Mulheres em Ação, com o objetivo de arrecadar doações e distribuir pelo Complexo do Alemão. E, agora, o Voz das Comunidades está com outro projeto de distribuição de quentinhas para as famílias carentes, e já passamos de mais de 1.000 refeições entregues”, descreve Neila sobre os resultados alcançados até a primeira quinzena de junho. 

Não se trata de uma comunicação inválida, pelo fato de não passar por um processo de legitimação da academia para dizer que o jornalismo é isso ou aquilo – Luan Matheus, Ocorre Diário e pesquisador.

Os coletivos doam também trabalho e habilidades com as ferramentas de comunicação. A exemplo disso, no Piauí a equipe do Ocorre Diário apoiou uma campanha com pessoas em situação de rua em Teresina com a produção de panfletos, spots explicando sobre o auxílio emergencial e carros de som nas periferias. Outra campanha foi para a comunidade quilombola São João do Jatobazinho, localizada na zona rural da cidade de Dom Inocêncio. As demandas foram apresentadas por pessoas próximas da equipe que se uniram nessa rede solidária que chegou a arrecadar mais de R$ 5 mil em quase um mês. 

A pandemia parece promover laços de solidariedade em contraposição à solidão do distanciamento. Ao enfrentar as desigualdades, esses territórios mostram os efeitos da pandemia onde não se pode simplesmente lavar as mãos e abandonar o outro à própria sorte. “Somos como uma ponte ligando diversos pontos na construção da emancipação das comunidades. Nisso também estamos produzindo cultura. Uma cultura pautada na humanização das formas de existir, pensar, agir, ser e criar”, opina a jornalista Sara Fontenele, membro do Ocorre Diário.  

O modo de fazer comunicação a partir das comunidades não é novo e é particular em cada grupo, guardando a essência das relações de maneira horizontal entre fontes, produtores, divulgadores e público, que se misturam nas definições. Para o jornalista Luan Matheus, do Ocorre Diário e também pesquisador na área de comunicação, “não se trata de uma comunicação inválida pelo fato de não passar por um processo de legitimação da academia, por exemplo, para dizer que o jornalismo é isso ou aquilo. Procuramos que esses modos de comunicação sejam cada vez mais fortalecidos independentes de quais sejam. Atuamos majoritariamente no ambiente digital, mas também com cursos de formação, educação popular, nos relacionando com as lideranças, procurando formas de conteúdo de maneira que consigamos ampliar o que já tem no portal e nas redes sociais”.  

Os questionamentos sobre o modelo de sociedade feitos historicamente pelos comunicadores comunitários se tornaram ainda mais urgentes com a pandemia. Porém, além de ficar em casa e esperar a normalidade, esses atores sociais se movimentam e afirmam que o processo sai da consciência individual para se impor na materialidade da vida real, coletiva, e expõe lutas contra a violação de direitos. A solidariedade se firma como um valor da democracia e a comunicação se dá na primeira pessoa do plural. 

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Publicado em Revestrés#46 que, devido a pandemia, circula online e gratuita.

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