Desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a Covid-19 uma ameaça global (11 de março de 2020), a indicação para frear o avanço do vírus é uma só: isolamento social. Ou seja, quem não trabalha em serviços essenciais deve ficar em casa. Enquanto uma vacina eficaz não é aprovada, os seres humanos, sociais por natureza, estão lidando com uma nova realidade de confinamento forçado. A reinvenção da rotina passa a ser uma meta: como adequar o trabalho ao ambiente domiciliar? Como fazer compras sem sair de casa? Como rever familiares e amigos de forma não presencial? Nesse contexto, Revestrés procurou estudiosos da psicologia e interessados para saber: como os artistas podem lidar com o isolamento social?
Meus parágrafos ganharam tosse, falta de respiração, ausência de cheiro. E a sombra da morte incerta o tempo inteiro – Marcelino Freire, escritor
Antes de prosseguir convém entender que a própria noção de arte e artistas é vasta. Platão, por exemplo, considerava arte todos os trabalhos produzidos por meio de regras, sejam de artistas, artesãos ou eruditos. Para o filósofo grego, a pintura, mas também a arquitetura, o ofício do caçador, o ofício do ferreiro, e todos os outros que pudessem ser ensinados e aprendidos, eram arte. Aristóteles, discípulo de Platão, tinha uma visão mais específica sobre o assunto. Para ele, arte é algo que mimetiza o ser humano e tem como finalidade levar o espectador ou o leitor a um momento de catarse (um sentimento de “purificação”) e prazer. Para Aristóteles a arte é útil ao espírito, fala ao humano sobre questões íntimas, individuais – humanas. A teoria aristotélica sobre arte é a mais utilizada no Ocidente e é por isso que vamos utilizar essa definição neste texto.
Agora vamos a um primeiro ponto sobre isolamento e criação artística: alguns artistas se isolam voluntariamente para criar, mas o confinamento atual é forçado. O escritor pernambucano Marcelino Freire, por exemplo, sente essa grande diferença no próprio texto. “Sempre passo uns dois meses, em férias, comigo mesmo, escrevendo, convivendo com os espelhos. Mas o caso atual é algo que foi imposto. Escrevo nesse meu tempo, mas meus parágrafos ganharam tosse, falta de respiração, ausência de cheiro. E a sombra da morte incerta o tempo inteiro”.
Quem pode explicar melhor essa relação entre isolamento e mudança no próprio trabalho é a psicanalista e escritora carioca Vivian Pizzinga. “A criatividade das pessoas se relaciona com as emoções. Logo, essas emoções, se alteradas por causa da situação da pandemia, terão efeito na criatividade, e não necessariamente um efeito regular, contínuo. Contudo, é necessário um estudo posterior para sabermos como esse momento impacta na criatividade, pois oscilações, seja nas emoções, seja nas rotinas, são esperadas numa situação como essa.”
O destaque da psicanalista sobre a oscilação emocional das pessoas em situação de isolamento é referendado pela OMS. A organização estima que entre um terço e metade da população exposta à pandemia possa vir a sofrer de ansiedade, tristeza, irritabilidade, sensação de impotência, estresse etc, decorrentes do confinamento. Contra esses sintomas, a OMS e a Fiocruz, no seu manual sobre Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Pandemia COVID-19, recomendam, entre outras atividades (veja box), a leitura, principalmente, como medida para diminuir o estresse do momento.
As emoções, se alteradas por causa da pandemia, terão efeito na criatividade, e não necessariamente um efeito regular, contínuo – Vivian Pizzinga, psicanalista e escritora
Semelhante conselho também pode se aplicar à escrita, como nos informa o professor de Psicologia e mestre em Psicanálise, John Luiz. “A escrita é um recurso sofisticado que os seres humanos construíram. Seu exercício opera como um suporte, com função estrutural, recomendável a qualquer pessoa. Através da experiência clínica é possível afirmar a importância da escrita para a promoção da saúde mental, inclusive em relação à análise”.
Essa função terapêutica da escrita também é compartilhada pela psicanalista e doutora em Psicologia Vera Iaconelli. “A escrita é uma das formas de sublimação mais nobres, como dito por Freud, para dar destino ao sentimento e elaborar questões psíquicas. Não tem efeito de cura, mas de fazer o sujeito procurar uma solução para o próprio sofrimento, para além da saída sintomática”. Vera esclarece que a situação atual de isolamento pode propiciar certos estímulos para a arte, contudo, outros fatores devem ser considerados. “Todos os sujeitos têm esse potencial para criação. Depende de como você vai dar destino a isso. Pode ser na engenharia, na matemática, no jardim, nas artes, mas a criação precisa de tempo, espaço e vazios. Você cria a partir de um vazio, um espaço negativo onde se produz algo. O isolamento pode propiciar esses espaços vazios.”
O professor John Luiz complementa explicando como esses espaços vazios foram preconizados por Freud e como isso influencia na produção dos artistas. “A pandemia impacta na criatividade por suscitar uma espécie de déjà-vu, por remeter todos à condição que Freud destacou em seus primeiros textos como ‘desamparo infantil’, uma condição de absoluta impotência diante da vida. O isolamento como medida efetiva para dissolver os efeitos da pandemia comemora essa condição de desamparo, que, por outro lado, experimentado como um furo, é terreno fértil para a criatividade.”
Isolamento e Arte
Livros, séries, filmes, música, shows e peças de teatro transmitidas ao vivo por redes sociais ou plataformas de vídeos são algumas das formas de entretenimento que ajudam a driblar o isolamento social. Em todas essas atividades, o artista está lá. Neste momento, convém relembrar o ensaísta Antonio Candido no célebre ensaio “O direito à literatura”, que coloca a produção artística e cultural como imprescindível para a vida humana. “A literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação.”
Os artistas não precisam, obrigatoriamente, ter uma função neste momento de isolamento. Contudo, são fundamentais para mantermos a sintonia com o próximo.
A psicanalista Vivian Pizzinga, por outro lado, reflete que os artistas não precisam, obrigatoriamente, ter uma função neste momento de isolamento. Contudo, são fundamentais para mantermos a sintonia com o próximo. “Temos à nossa disposição livros, filmes, séries, música, memórias, é isso o que nos sustenta. Então a função do artista já está feita, digamos assim. Mas, se ele puder, se tiver como – sabendo-se das limitações tecnológicas e pessoais mesmo-, ele pode até fazer atividades como: escrever mais, propor lives musicais ou de teatro, pintar, promover atividades artísticas coletivas, que envolvam mais pessoas além dele.”
Essa capacidade de criar e envolver outras pessoas em meios digitais também chama a atenção da filósofa Márcia Tiburi. Para ela também se trata de generosidade. “As pessoas têm se voltado às artes e os artistas podem ser generosos e fazer da sua arte uma função social. Creio que é hora de ajudar as pessoas com reflexões e usar as redes para isso é fundamental. Muitos artistas de todas as áreas e com níveis variados de inserção nas redes têm ajudado nesse sentido.” A filósofa também é esperançosa quando perguntada se acredita que esse momento pode mudar a relação das pessoas com os livros. “Tenho esperança que sim. Para quem tem tempo, ler voltou a ser uma opção. Mas o problema é que a indústria da cultura tudo devora e também se esforça por transformar o tempo livre em tempo de entretenimento vazio. Agora espero que a indústria cultural não vá tão longe.”
Marcelino Freire diz que os livros sempre mudam – “Uma poesia nunca está no mesmo lugar em que a deixamos”-, e já trazem respostas para o que angustia mesmo antes de sabermos as perguntas exatas. “Fui reler Drummond e tudo já está lá: a ganância humana, a destruição da natureza, a solidão de alguém trancado em si mesmo. Um livro sempre está em movimento. São nossos companheiros, nossas vacinas, nossos remédios. Estão sempre nos abraçando, de páginas abertas. Essa força perdura, ninguém tira da literatura.”
Recomendações da Fiocruz para a Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Pandemia COVID-19
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) produziu um manual com recomendações gerais sobre Saúde Mental e Atenção Psicossocial por conta da Pandemia de COVID-19. Segundo a Fiocruz, com respaldo da OMS, é esperado que a pandemia coloque as pessoas em constante estado de alerta, preocupação, confusão, estresse e com sensação de falta de controle frente as incertezas do momento. Contudo, nem todos os problemas psicológicos e sociais desenvolvidos poderão ser qualificados como doenças, afinal serão reações normais diante de uma situação anormal.
A Fiocruz destaca que as reações mais frequentes esperadas em momentos de pandemia são: medo de adoecer e morrer, de perder as pessoas amadas, de perder os meios de subsistência ou não poder trabalhar durante o isolamento e ser demitido; medo de ser excluído socialmente por estar associado à doença, de ser separado de entes queridos e de cuidadores devido ao regime de quarentena, de não receber um suporte financeiro, de transmitir o vírus a outras pessoas. É esperado também sensação recorrente de impotência perante os acontecimentos; irritabilidade, angústia e tristeza.
Em seguida, a Fiocruz recomenda certas estratégias de cuidado psíquico em situações de pandemia:
Reconhecer e acolher seus receios e medos, procurando pessoas de confiança para conversar;
Investir em exercícios e ações que auxiliem na redução do nível de estresse agudo (meditação, leitura, exercícios de respiração, entre outros mecanismos que auxiliem a situar o pensamento no momento presente);
Se você estiver trabalhando durante a epidemia, fique atento a suas necessidades básicas, garanta pausas sistemáticas durante o trabalho (se possível em um local calmo e relaxante) e entre os turnos. Evite o isolamento junto a sua rede socioafetiva, mantendo contato, mesmo que virtual;
Evitar o uso do tabaco, álcool ou outras drogas para lidar com as emoções;
Buscar um profissional de saúde quando as estratégias utilizadas não estiverem sendo suficientes para sua estabilização emocional;
Compartilhar as ações e estratégias de cuidado e solidariedade, a fim de aumentar a sensação de pertença e conforto social;
Buscar fontes confiáveis de informação como o site da Organização Mundial da Saúde. O manual completo está disponível em: www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br.
A Fiocruz reitera que caso as estratégias recomendadas não sejam suficientes, é necessário auxílio de um profissional de Saúde Mental e Atenção Psicossocial (como psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, psiquiatras, por exemplo), para orientações individuais.
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Publicado em Revestrés#46 que, devido a pandemia, circula online e gratuita.
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