Sou artista-residente em Paris desde janeiro deste ano, na Cité Internationale des Arts, graças ao Prêmio Icatu de Artes 2020, que me foi concedido para compor a ópera “Leopoldina”. Aqui ficarei até dezembro.
No trabalho de composição venho desenvolvendo ideias musicais que tentam retratar com fidelidade os personagens: acredito na música como linguagem. Mas, algo pode causar surpresa. Há um personagem, ao lado de Leopoldina, que sobrepuja a figura de D. Pedro: é José Bonifácio.
José Bonifácio de Andrada e Silva, que nasceu em 1763 em Santos, São Paulo, se fosse vivo hoje estaria sendo chamado de comunista pelos bolsonaristas. Ele estudou no Rio, em Portugal, na França, na Suécia e na Noruega. Quando D. João convocou eleições Constituintes, ele foi eleito para representar Santos e São Vicente.
Sua carreira política foi marcada por lutas e ideias revolucionárias: pelo fim da escravidão, pela atenção aos índios, pela miscigenação para acabar com o choque de raças, pela reforma agrária e fim do latifúndio, pela preservação das florestas, pela distribuição democrática das águas, etc. Quando as tropas de Napoleão invadiram Portugal, José Bonifácio, com 44 anos de idade, liderou um movimento clandestino de libertação em Lisboa.
A composição da ópera, com libreto de Gerson Valle, foi motivada pelo fato de que em 2022 o Brasil deverá – esperamos todos – celebrar o Bicentenário da Independência. A personagem-título, Leopoldina Josefa Carolina de Habsburgo-Lorena, a Princesa Leopoldina, foi, influenciada por José Bonifácio, a grande mentora e articuladora da Independência.
Ela, que foi arquiduquesa da Áustria, nasceu em Viena em 1797 e morreu aos 29 anos de idade, em 1826. A educação a que ela teve acesso na infância e na adolescência foi exemplar, tendo sempre demonstrado sólida formação científica e cultural. Isso contrastava com as ações de seu marido D. Pedro que, irresponsável, foi um doidivanas em suas análises de conjuntura e em suas relações amorosas.
Foi Leopoldina quem assinou, na ausência de D. Pedro e aconselhada por José Bonifácio, em 2 de setembro de 1822, o decreto da Independência, declarando o Brasil separado de Portugal. Os louros do ato histórico viriam a ser colhidos por D. Pedro no dia 7 de setembro.
Após a Independência, em maio de 1823 foi instalada a Assembleia Constituinte, mais uma vez liderada por José Bonifácio que escreveu uma carta magna arrojada. A proposta de abolição da escravatura desagradava os fazendeiros. Resultado, os velhos da havan daquela época, os olavos de carvalho daquela época e os empresários da fiesp daquela época conseguiram fazer com que José Bonifácio fosse cassado, preso e deportado.
Ou seja, José Bonifácio era um esquerdista de carteirinha, que hoje certamente estaria liderando uma verdadeira revolução no Brasil para derrubar Bolsonaro e suas camarilhas militares e familiares. Certamente ele não ia esperar Rodrigo Maia dar seguimento a algum pedido de impeachment. Imagino que já estaria nas ruas, de máscara, em cima de um trio elétrico, ensinando ao povo que o auxílio social de 600 reais não passa de mísera esmola que daqui a pouco o governo vai suspender e também ensinando ao povo que o furto famélico não é crime.
Acho que somente um movimento bonifacista poderia dar rumo bom para o fim das duas tragédias vividas hoje pelo povo brasileiro: a tragédia sanitária e a tragédia política.
Jorge Antunes é maestro, compositor, professor titular aposentado da Universidade de Brasília e membro da Academia Brasileira de Música.
A cada terça e sexta um novo texto nessa nova seção. Acompanhe.
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