Quando a Nossa Senhora de Fátima não era a avenida em que hoje se transformou, eu costumava frequentar a Des Livres, no lado direito da via, no sentido da universidade. A livraria desapareceu, como muitas outras coisas, seguindo o destino inelutável de que vivemos num mundo mutante e de que o construir e o desconstruir de uma cidade nunca acabam.
Um dia, fui atrás de um livro e logo outros me seduziram nas estantes cheias. Não sei por que me vi com Otto Lara Resende nas mãos: era O Príncipe e o Sabiá, publicado em 1994, dois anos após a morte do autor. Não pretendia ficar muito tempo folheando e lendo aqui e ali, mas a verve do escritor era de tal forma envolvente que terminei por sentar no banquinho que ficava à disposição dos leitores, para mergulhar melhor no texto, já completamente rendido.
Esse livro de Otto, organizado pela escritora cearense Ana Miranda, é constituído de sessenta textos recolhidos de “seu fascinante material jornalístico”. São perfis cronísticos de personalidades, a maior parte das quais escritores, como Clarice e Rosa. O escritor mineiro gostava de conversar com pessoas, fossem essas de expressão cultural ou não. É natural que tenha usado na sua prosa a memória, sem a qual, é bom dizer, não há literatura.
Em um de seus perfis, Otto se refere a um comentário de sua filha: – Pai, deixa de ser reminiscente, pare de falar em Vargas!
Devo dizer aos leitores que também sou chegado a uma reminiscência. Não saudosismo, que, aliás, detesto, mas o aflorar da memória por mecanismos que não sei explicar. Deve ser uma tentativa de nos salvar da devoração do esquecimento.
Na verdade, antes de começar esta crônica, tencionava falar sobre outro episódio, ocorrido dezesseis anos antes, com os mesmos ingredientes da leitura e da fascinação pelo texto. Eu havia chegado a Teresina há pouco mais de um ano e fui a um debate sobre jornalismo e literatura, no Auditório Herbert Parentes Fortes, na Av. Miguel Rosa, quase esquina com a Frei Serafim. Para quem não sabe, na segunda metade da década de 1970 e talvez por toda a década seguinte, aquele lugar foi ponto de encontro de parte da juventude sedenta por participação cultural em Teresina.
Várias publicações haviam sido expostas para apreciação dos presentes, entre as quais um exemplar de DISTANTERESINA, jornal publicado em 1977, que padeceu do “mal do terceiro número”. Passeei pelos poemas, contos, crônicas e ilustrações daquela publicação modesta, porém feita com muita garra e sensibilidade participativa. Durou pouco tempo a permanência do impresso nas minhas mãos, pois logo chamaram para o debate, mas ficaram gravados na memória fragmentos de palavras e imagens e a inquietante vibração que provocavam.
O tempo passou, como tudo passa, e ficou nisso. A publicação deixara de ser editada um ano antes, sem eu ter adquirido um número sequer, inexplicavelmente, pois eu andava à caça de textos dos autores locais da época. Mas, no decorrer desta semana, no meio de uma conversa com Paulo Machado e Ferdinand Cavalcante, os dois, que figuravam entre os responsáveis pela edição, mencionaram DISTANTERESINA, e esse nome parecia um pássaro que voava ao longe, as asas feitas de papel.
Logo Ferdinand me passou o que encontrou nos seus arquivos: o número um, inteiro, impresso em papel amarelo, na gráfica O Liberal, e apenas a capa e a primeira página do número dois, impresso na COMEPI. Nenhum desses dois números pareceu-me o exemplar que vi no Auditório Herbert Parentes Fortes. Portanto, devo ter visto o número três, embora Ferdinand, divergindo de Paulo, afirme que só existiram dois números.
Como muitas publicações da época, DISTANTERESINA tinha em suas páginas a influência de Torquato Neto, falecido em 1972. A começar pelo paralelismo e a similitude do título. O poeta piauiense criara a palavra TRISTERESINA. Da alta afetividade poética da canção A Rua, transitara para a ruptura de Três da Madrugada (“a cidade abandonada / e essa rua não tem mais / nada de mim . . .”).
Talvez eu não possa dizer, como o poeta, que esta cidade não tem mais nada de mim. Teresina é muito diferente do lugar que encontrei quando aportei, adolescente, no ano em que circularam os dois ou três números do DISTANTERESINA. Parafraseando uma canção de Belchior, se alguém me perguntar por onde andei, direi, como os autores do DISTANTERESINA, que eu também sonhava com outro mundo, outra cidade…
Sou tentado a citar novamente o escritor mineiro do início, no momento em que, da rua deserta, vem o ronco de uma motocicleta que passa em alta velocidade. “O resto é silêncio”.
Publicado na Revestrés#43 – setembro-outubro 2019.
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