Cheguei em Teresina em 2004 para cursar Comunicação Social na Universidade Federal do Piauí. Com 18 anos de idade, passagens pelo Rio de Janeiro, Brasília e Parnaíba, a mudança para as terras mafrenses repercutiu em mim como um golpe súbito. Não apenas por experimentar as agruras da capital mais quente do Brasil ou da única sem praia do Nordeste, atributos exagerados e “propagandeados” com alguma frequência na narrativa hegemônica sobre Teresina. Mas, principalmente, por contrastá-los a partir da vivência no efervescente cenário de rock autoral que a cidade tinha para oferecer a quem estivesse disposto(a) a explorá-lo.
Uma das características que mais me agradava neste cenário musical da primeira metade dos anos 2000 era a boa quantidade de artistas que, totalmente autorais ou mesclando covers no repertório, produziam músicas (re)conhecidas por um público considerável. Além de álbuns inteiros recheados de sucessos, casos de Teófilo ou do grupo Narguilé Hidromecânico, existia um repertório amplo de hits locais avulsos: “Trazer você aqui” (Amigos do Vigia), “Freak Lagarta” (Brigite Bardot), “Homem do Amanhã” (Mano Crispim), “Inverso” (Karranka), “Teresina capital do mundo” (Don Corleone), entre vários outros exemplos.
Uma das características que mais me agradava era a boa quantidade de artistas que, totalmente autorais ou mesclando covers no repertório, produziam músicas (re)conhecidas por um público considerável.
Foi também em 2004, nas dependências da Ufpi, que surgiria o Validuaté, grupo que alcançou algumas das maiores façanhas do rock piauiense. Após quatro anos de atividades de maturação do repertório, lançariam o primeiro álbum, também recheado de sucessos, “Pelos pátios partidos em festa”, em 2008.
A capacidade do Validuaté, na altura, em articular aspectos tipicamente locais (estéticos, rítmicos e discursivos) com a universalidade do rock, verificada em músicas como “Me abana bem” ou “O Hermeto e o Gullar”, era uma tendência, apelidada de de rock regional, adotada por muitos grupos que também tiveram boa visibilidade nos anos 2000: Os Caipora, Roque Moreira, Batuque Elétrico, Captamata, Eu Capiau, Lado 2 Estéreo, Fragmentos de Metrópole, entre vários outros.
O cenário era composto também por nomes menos conhecidos do público. Um incontável número de artistas ligadas às vertentes mais pesadas do rock como o heavy metal (entre vários, Megahertz e Anno Zero) e o punk-hardcore (entre muitos, Káfila e Obtus). Ao indie-rock, casos das bandas Bedtrip Clube, Tequinoise, Wake Up, Killer! e Trinco, e ao rock de características vintage, caso dos grupos Radiofônicos e Clínica Tobias Blues.
O fato é que Teresina experienciava o otimismo da narrativa que se formava em torno da nova música independente brasileira do início dos anos 2000. Este era verificado na repercussão de artistas de médio porte no cenário cultural, no surgimento de iniciativas como o Circuito Fora do Eixo e a Associação Brasileira de Festivais Independentes (ABRAFIN) ou do êxito de políticas públicas, como o Projeto Cultura Viva.
A sistematização de um acervo vasto e em crescimento
O repertório fruto destas movimentações artísticas, que eu fruía perambulando por shows em várias zonas da cidade, se tornaria, anos mais tarde, uma obsessão pessoal. Movido por uma vontade que mesclava entusiasmo juvenil e interesses acadêmicos, mergulhei em um trabalho de sistematização de parte deste acervo, que culminaria na militância cultural e em uma tese de doutorado em Sociologia.
Uma das dimensões trabalhadas foi a montagem de um catálogo de artistas com as suas respectivas produções fonográficas que cobrisse o período de 2001 a 2016. Mesmo com provas empíricas fartas, há ainda, e isso não é exclusivo de Teresina, um déficit de informações sistematizadas sobre o volume de artistas atuantes nos segmentos musicais independentes brasileiros. Bem como dos produtos – fonográficos e videográficos – frutos destas movimentações.
Ciente desta lacuna, no decorrer dos anos de 2014, 2015 e 2016, montei catálogos referentes não apenas aos artistas e à sua produção. Mas também aos espaços disponíveis para a música autoral e às instâncias que produziam este tipo de evento.
Estes espaços – mais de 70 catalogados entre 2014 e 2016 – têm sido ocupados por um conjunto de mais de 150 projetos musicais – bandas ou artistas-solo – que exercem ou exerceram atividades nestes primeiros anos do século XXI. Estes têm disponibilizado mais de 230 produtos fonográficos, nos mais variados suportes e formatos, fornecendo um repertório riquíssimo do ponto de vista estético, bem como em contínua expansão, e dissipando qualquer dúvida sobre a robustez do cenário de música autoral de Teresina.
Obviamente, dificuldades existem. Questões como a sustentabilidade financeira das carreiras, a visibilidade nacional e mesmo regional de boa parte dos trabalhos e a conexão mais sólida com outros cenários musicais de rock brasileiro, principalmente pela falta de um festival de médio porte, são ainda desafios a serem superados.
Uma das principais consequências destas lacunas é a presença ainda tímida de Teresina no imaginário musical independente brasileiro deste início de século XXI. Esse aspecto fica evidenciado pelo fato de outros contextos “periféricos” terem alcançado tal estágio, fato verificado principalmente no reconhecimento a nível nacional de artistas oriundos deste tipo de território.
Apesar destas dificuldades, o cenário musical de Teresina adentraria os anos de 2010 forte, com o surgimento de vários novos nomes. Estes enriquecem ainda mais o já substancial acervo de rock autoral, pronto a ser desbravado por quem esteja suficientemente disposto(a) a conhecê-lo.
Thiago Meneses Alves é doutor em Sociologia pela Universidade do Porto (Portugal), professor de Comunicação da Universidade Federal do Piauí (Ufpi) e autor da tese “Genealogia, morfologia, dinâmicas e produtos do rock independente de Teresina no início do século XXI”.
Publicado em Revestrés#42 – julho-agosto de 2019.
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