Um antigo provérbio siciliano diz: “A língua que atravessa o mar supera a dificuldade de se fazer entender”. Ele já foi usado para discutir colonialismo, poder e disputas por terras. A Sicília, ilha ao sul da Itália, tem na capital Palermo uma história de 2.700 anos, atravessada pela dominação de pelo menos 13 diferentes povos (fenícios, gregos, ostrogodos, vândalos, espanhóis, romanos, cartagineses, árabes e normandos, entre outros). Com a realização da Manifesta 12, a bienal nômade de arte contemporânea, o provérbio pode ser atualizado: poucas coisas no mundo, como a arte, conservam o poder de fazer-se entender em diferentes línguas. A Manifesta 12 atraiu a Palermo artistas, jornalistas, produtores e público do mundo inteiro durante todo o período de sua realização (de 16 de junho até 04 de novembro de 2018).  

Reinterpretado, o provérbio tornou-se experiência concreta na Piazza Magione, quando um cortejo tem sua caminhada interrompida ao ser ouvido um discurso ao microfone. Eram senhores da Associazione Nazionale Partigiani d`Itália. Eles reivindicavam o reconhecimento do papel da Sicília na expulsão do fascismo da Itália, feito normalmente atribuído aos moradores da região norte do país. A fala emocionada foi seguida por uma banda de música entoando Bella Ciao, canção que se tornou símbolo da resistência italiana ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto bailarinas repetiam o refrão com punhos cerrados. As pessoas na praça, vindas dos mais diferentes países, se entreolharam, comovidas. Estava tudo entendido. Era arte. Era parte da performance “Procissão Palermo”, da artista italiana Marinella Senatore, um ritual que atravessou a cidade convidando as pessoas a participarem e envolvendo aspectos culturais próprios da Sicília, organizações da sociedade civil e a gente de Palermo.  

“Palermo Procession”, por Marinella Senatore. Foto: André Gonçalves

Quem acompanhou a procissão também viu praticantes de parkour escalando igrejas seculares. Ou grupos locais de percussão cortando as ruas com ritmo. Teve até samba. Ou estudantes de sapateado e acrobatas surgindo nas praças. Até uma cantora lírica, acompanhada de um violonista, repentinamente começou a cantar no alto da varanda de um palácio. Nada era previamente informado. Restava aos acompanhantes do cortejo perceberem aquela nova aparição como parte da performance. Algumas vezes nem era. Uma noiva tentava chegar à igreja para seu próprio casamento e foi confundida pelos que já se achavam “safos” na proposta de Senatore. A artista acompanhava tudo, sem protagonizar nenhuma cena, e pouco tentava controlar seus possíveis desdobramentos. Com sua procissão, inspirada na religiosidade e no sincretismo de Palermo, ensinava: não se faz performance de rua para si.  

Além de performances, a Manifesta reúne artes visuais diversas, incluindo instalações, vídeos e também palestras. Ela acontece em uma nova cidade da Europa a cada edição e é considerada uma das maiores bienais de arte contemporânea do mundo, pela extensão da programação, quantidade de artistas envolvidos e objetivos pretendidos. Mais do que arte contemporânea, a Manifesta é a afirmação de que a arte é um espaço de discussão política. Assim, a escolha de um novo local deve responder a duas perguntas iniciais: que temática se impõe como discussão urgente? E que cidade pode funcionar como lente de aumento para analisar essa questão? Em sua décima segunda edição a Manifesta escolheu como tema um dos assuntos mais em evidência e preocupantes hoje na Europa e no mundo: a migração. E, como cidade, escolheu Palermo, que além da história construída pelo acúmulo e mistura dos mais diversos aspectos culturais de diferentes povos, é hoje uma das principais rotas de entrada de migrantes na Europa, recebendo pessoas especialmente do norte da África, sudoeste asiático e Oriente Médio.  

“Festino Della Terra”, por Jelili Atiku. Foto: André Gonçalves

Da extensa programação oficial participam 50 artistas, entre convidados e escolhidos via convocatória. Há uma programação colateral com artistas consagrados e novos projetos, somando assim 71 eventos. E há uma terceira programação, chamada 5x5x5, que reúne 5 artistas, 5 instituições de educação e 5 galerias que estrategicamente realizam atividades, buscando promover artistas e espaços de arte. A Manifesta ainda mantém uma agenda educativa, voltada a estudantes. Em todas as atividades é buscado o envolvimento da comunidade de Palermo. Até o final do ano a previsão é de que ocorram cerca de 900 eventos culturais na cidade. Isso somente se torna possível com pleno apoio do poder público e patrocínio da iniciativa privada. Entre patrocinadores e parceiros, a bienal soma 80 empresas e instituições. A realização é assinada pela Fundação Manifesta e pela Prefeitura de Palermo.  

Falando à imprensa, Hedwig Fijen, diretora da Manifesta, afirma que nestes 25 anos a verdadeira força da bienal nômade está em “criar uma estrutura em que artistas possam trabalhar com autonomia, sem constrangimentos de mercado”.  

Para receber as atividades, todo o centro histórico de Palermo está em transformação. Depois de décadas de abandono no pós-guerra e sofrendo as consequências de um poderoso sistema de corrupção que tornou a cidade conhecida pela atuação da máfia siciliana, Palermo está em meio a uma volta por cima, via arte e cultura. Alguns palácios, antes quase abandonados, foram ou estão sendo reformados. O Teatro Garibaldi, que estava em estado de decadência, passa por um projeto de recuperação e hoje abriga o centro de comando da Manifesta 12.  

Teatro Garibaldi. Foto: André Gonçalves.

 

A poderosa cultura

Palermo viu na Manifesta a chance de tornar obsoleta a imagem mais comumente ligada à cidade, que dá papel protagonista à máfia siciliana, organização criminosa que constrangia o Estado, deixou um rastro de crimes e destruição e até hoje insiste em manter-se, embora não com o mesmo vigor.

Se era difícil se livrar do esquema criminoso, tudo pareceu mais complexo depois que o cinema americano consagrou a imagem da Sicília como terra de mafiosos. O filme “O Poderoso Chefão”, dirigido por Francis Ford Coppola e baseado no livro homônimo de Mário Puzzo, narra a história da família Corleone. Conta-se que Coppola demorou a aceitar o convite para dirigir o filme, temendo glamourizar a máfia. “O Poderoso Chefão” teve tanto sucesso que virou uma sequência de três longas (1972, 1974 e 1990), foi indicado a 10 Óscars e venceu, entre eles, o de melhor filme. O Instituto Americano de Cinema o apontou como “melhor filme de gângster de todos os tempos”. No terceiro filme, as escadarias do Teatro Massimo de Palermo são cenário de um dos tiroteios mais famosos do cinema americano.

O que fez glória em Hollywood, alimentou a curiosidade sobre a Sicília. A imagem da máfia continua forte quando se olha para a ilha à distância. Há inclusive agências de turismo que vendem roteiros onde se pode conhecer as locações de O Poderoso Chefão. No entanto, essa é a imagem que a cidade prefere esquecer. No lugar dessa memória, a intenção é fazer valer o título de “Capital Italiana da Cultura”, que Palermo adotou este ano (2018), como parte dos esforços que pretendem projetar uma nova imagem para a quinta maior cidade da Itália.

Leoluca Orlando, prefeito de Palermo | Foto: André Gonçalves

Por isso mesmo o prefeito Leoluca Orlando abraçou a Manifesta e tem participado dos mais diversos eventos. Em material distribuído à imprensa, ele afirma: “Colocar Palermo como Capital italiana da Cultura não é meramente realizar uma programação de eventos, mas adotar uma visão da cultura como paradigma”.

Na noite de abertura da Manifesta (16 de junho), ocorrida no mesmo Teatro Massimo, palco da cena clássica hollywoodiana, tudo o que o prefeito queria era apagar àquela imagem. Revestrés esteve lá e testemunhou: sem usar a palavra máfia em seu discurso, Leoluca fez referência a “uma época de crimes que não corresponde mais a realidade de Palermo”.

A busca é diluir essa referência e ofertar outras. Na visita guiada ao Palácio Massimo já não se conta sobre o filme americano. As citações à obra cinematrográfica são cada vez menores na cidade e aparecem em artesanatos de gosto duvidoso, como canecas em forma de arma ou um avental onde O Poderoso Chefão é usado como um trocadilho para chef de cozinha.

Manthia Diawara, escritor, documentarista e professor | Foto: André Gonçalves

Nem tudo segue em perfeita harmonia. Palermo é uma cidade viva inclusive em suas contradições contemporâneas. Ainda no mesmo teatro Massimo, onde o prefeito se esforçava para anunciar novos tempos, o palestrante Manthia Diawara, negro, foi barrado por seguranças brancos. Ele argumentou que era o conferencista. O segurança duvidou e pediu que esperasse na porta enquanto confirmava a informação. Só depois disso, Diawara teve acesso ao teatro. Ele é escritor, documentarista, professor da universidade de Nova York e referência em estudos de Mundialização e cultura. Nasceu em Bamako, Mali, país africano. Seu pai foi para os Estados Unidos como imigrante, percurso que ele próprio percorreria anos depois. Naquela noite era a estrela da conferência de abertura da Manifesta 12.

Já no palco, o prefeito Leoluca novamente se desdobrava na simpatia palermitana ao falar para Diawara: “Somos todos iguais”. O estudioso agradeceu, mas corrigiu gentilmente: “Somos todos diferentes. E afirmar que o negro é igual ao branco, não beneficia o negro”.

 

Pouco domesticada

Para realizar a Manifesta em Palermo os organizadores do festival já estão em contato com a cidade desde 2012, quando os problemas de migração, já consistentes, viviam um momento menos efervescente.

Um estudo interdisciplinar precedente reuniu os chamados “mediadores criativos”, uma equipe composta por curadores de arte, arquitetos e jornalistas, em parceria com o escritório de arquitetura OMA (Office for Metropolitan), sediado em Rotterdam. Esse grupo se associou a organizações, produtores culturais e ativistas de Palermo.

A Manifesta 12 partiu de uma proposta teórica, segundo seu programa: como é possível cuidar de um mundo governado por redes de informação invisíveis, interesses privados transnacionais, inteligência algorítmica e transformações ambientais crescentes? Chegou-se a metáfora de um planeta como um jardim e ao lema “Jardim Planetário, cultivando a coexistência”. O termo “Jardim Planetário” foi citado pelo botânico francês Gilles Clément em 1997, quando este descreveu o mundo como um jardim planetário do qual a humanidade é o jardineiro responsável.

Além dos palácios espalhados pela cidade, o Horto Botânico recebeu obras de artistas e teve um papel de inspiração para a bienal. Fundado em 1779, ele tem mais de 12 mil espécies de plantas não originais da Europa. Tornou-se uma metáfora para discutir migração e hibridação.

A possibilidade de coexistência não apaga as diferenças e contradições. Palermo é também uma cidade de grandes desigualdades sociais. As tensões não deixam de chegar ao próprio evento. Logo nos primeiros dias, o Teatro Garibaldi recebeu adesivos colados anonimamente. Traziam a palavra “Moneyfesta”, numa contestação a bienal.

Contestação e arte contemporânea, de certa forma, já coexistem. Em entrevista à publicação Exibart, Masbedo, assinatura da dupla de artistas Nicolò Massazza e Iacopo Bedogni, considera Palermo um local fascinante exatamente por ser “uma cidade pouco domesticada”.

Hedwig Fijen, diretora da Manifesta | Foto: André Gonçalves

Na mesma publicação a diretora Hedwig Fijen reconhece as contradições sociais próprias de Palermo, que se cruzam a tensões políticas, econômicas, ecológicas e o tráfico ilegal de pessoas no mundo e afirma: “Palermo pode funcionar como uma metáfora da crise global que a Europa tem enfrentado”. Ela conclui: “A esperança é que a arte possa propor uma alternativa”. Segundo o planejamento da Manifesta, os impactos e efeitos sociais, só poderão começar a ser avaliados depois que a bienal terminar, num espaço de até cinco anos.

Voltando ao provérbio siciliano, é importante não confundir o poder de fazer-se entender com entendimento homogêneo, em especial quando se trata de arte contemporânea. No Horto Botânico, o trabalho do artista palestino Khalil Rabah, dá mostras disso. “Realocação, entre outras coisas” reproduz um mercado e sua mistura. A proposta somente se torna visível quando vista do alto, após se percorrer passarelas suspensas que dão a volta na sala. Uma visitante americana não se deu a esse trabalho e concluiu ao entrar na sala: “What the fuck?!”.

Mas com a arte contemporânea, mesmo quem pensa estar aberto, continua a correr riscos. Munida de um mapa, Revestrés percorreu o Horto Botânico em busca de obras indicadas na programação. Não encontrando uma das obras, insistiu com um dos informantes. Ele observou: a obra já se encontrava logo ao lado. Em The Drowned World (O Mundo Afogado), o artista americano Michael Wang usou um velho tanque já existente no Horto, com micróbios pré-existentes, e introduziu novos micróbios, fungos e outros elementos naturais, gerando um novo ambiente e observando como a vida pode se transformar, conviver e/ou sobreviver a partir daquele encontro, como nas migrações.

Migrações e arte nos expõem. E com a arte contemporânea corremos mais riscos do que com aquelas lambretas que cortam as ruas de Palermo velozmente a buzinar. A cultura e a arte são mesmo uma vespa a zunir nos nossos ouvidos.

Arte e migração  

Para a Manifesta a arte contemporânea é um espaço de discussão política. Junta-se a isso o prazer estético e a fruição fica por conta de quem entra em contato com a obra, não limitando interpretações, mas tentando provocar um ir além do aparente.

Revestrés indica, não sem correr riscos, obras da Manifesta 12 para a discussão da migração:

The Soul of Salt (A Alma do Sal): Patricia Kaersenhout, Holanda, descendente de africanos – A tradição ensinou aos escravos capturados na África que, caso eles comessem sal, teriam dificuldade de retornar a sua terra. Tratava-se, na verdade, de uma estratégia para negar sal aos negros. Kaersenhout levou uma montanha de sal ao Palácio Forcella de Setta. Os visitantes podem recolher parte do sal e levar consigo, com o compromisso de devolvê-lo ao mar, simbolicamente dissolvendo os sofrimentos passados. A obra fala da dor do não retorno, em contraste com o fenômeno atual da crise dos refugiados.

The Soul of Salt, por Patricia Kaersenhout | Foto: André Gonçalves

Tutto (Tudo): Matilde Cassani, Itália – Performance criada especialmente para o Quattro Canti de Palermo, uma praça octogonal que é o encontro das vias mais importantes do centro da cidade. Em Tutto, uma explosão de pequenos papéis coloridos forma uma chuva que cai sobre as pessoas, acompanhada pelo som de uma forte percussão. Os participantes testemunham uma experiência coletiva comovente.

– Palermo Procession (Procissão Palermo): Marinella Senatore, Itália – Performance urbana com participação de diferentes profissionais e amadores da cidade. Experiência não hierárquica envolvendo dança, música, poesia, e valorizando características e grupos locais. Interessam a artista a trama social e o ambiente caótico, em contínuo movimento. Senatore acredita nesta performance como uma utopia testada e como a capacidade de restituir orgulho às pessoas que participam (veja mais no texto da reportagem).

Palermo Procession, por Marinella Senatore | Foto: André Gonçalves

– Festino Della Terra (Festa da Terra): Jelili Atiku, Nigéria – Performance pelas ruas da cidade, relacionando o ato de caminhar (se deslocar) com o transporte de plantas, terra, esculturas sacras e rituais próprios da Nigéria, com o fim de indagar as migrações sob uma perspectiva alegórica e metafórica. Atiku propõe uma interação entre arte, ciência, cultura e sociedade.

Festino Della Terra, por Jelili Atiku | Foto: André Gonçalves

– Untitled (near Parndorf, Áustria), (Sem título, perto de Parndorf, Áustria): John Gerrard, Irlanda. Um vídeo mostra uma estrada abandonada. A câmera se desloca lentamente até chegar a marcas de carro no acostamento. Não há carro, não há mais nada, ainda assim o vídeo é impactante. A cena reconstitui o local exato onde, em 27 de agosto de 2015, o motorista de um furgão abandonou o carro que continha 71 corpos de migrantes, todos mortos por asfixia no interior do veículo. O local fica próximo ao município de Parndorf, na Áustria. O caminhão foi encontrado por um funcionário da rodovia que observou um líquido de decomposição escorrendo do baú. Gerrard gravou o vídeo dois dias após o caminhão ser encontrado.

Untitled (near Parndorf, Áustria), por John Gerrard | Foto: André Gonçalves

The Third Choir (O Terceiro Coro): Lydia Ourahmane, Argélia – Instalação composta de 20 barris de petróleo Naftal exportados da Argélia. A proposta é discutir a burocrática política de imigração que, ao permitir o transporte de produtos como o petróleo, mas coibir o deslocamento de pessoas, conduz ao fenômeno da imigração clandestina. Quando foi apresentado pela primeira vez, em 2014, este se tornou o primeiro trabalho de arte legalmente exportado da Argélia desde 1962, ano em que entrou em vigor uma lei que limitava a exposição de trabalhos de arte.

The Third Choir, por Lydia Ourahmane | Foto: André Gonçalves

– Una proposta di sincretismo (questa volta senza genocídio), (Uma proposta de sincretismo (desta vez sem genocídio): Maria Thereza Alves – única brasileira na Manifesta 12, a artista nasceu em São Paulo e vive e trabalha em Berlim, Alemanha. Ela usa mosaicos onde estão pintados elementos da paisagem geográfica e gastronômica da Sicília, mas onde se juntam também elementos de outros locais, como um papagaio brasileiro.

Una proposta di sincretismo (questa volta senza genocídio), por Maria Thereza Alves | Foto: André Gonçalves

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Matéria originalmente publicada na Revestrés#37 – agosto-setembro de 2018.

Devido a pandemia, a edição mais atual, Revestrés#45, não foi distribuída impressa, mas está disponível de modo livre e pode ser baixada ou lida gratuitamente nos links:
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