Em abril de 2017 um aneurisma na aorta calou um dos nomes mais singulares da música brasileira: Belchior. Com sua partida, o artista nascido em Sobral, no Ceará, deixou um vácuo difícil de ser preenchido no cancioneiro nacional e mais ainda: muitas perguntas. Quem era Belchior, além do escritor e cantor de voz um tanto fanha e inconfundível? Que mistérios estão por trás de seu sumiço de cerca de dez anos, não só do cenário musical mas entrelaçado a um roteiro quase cinematográfico de idas e vindas, boatos e histórias?
O jornalista Jotabê Medeiros, nordestino como Belchior (Jotabê nasceu em Sumé, Paraíba), tentava encontrar essas respostas e traduzir quem seria o tal “rapaz latino-americano”. Já havia mais de dois anos que escrevia o que se tornaria a biografia do bardo cearense quando, em mais uma de suas muitas surpresas, Belchior morreu. Jotabê, que já havia realizado mais de 100 entrevistas e conversado com Belchior por telefone, tinha as passagens compradas para Santa Cruz do Sul, onde teriam um encontro. Não deu tempo.
Pego de surpresa, o autor da biografia Belchior – Apenas um Rapaz Latino-Americano decidiu colocar o livro na rua e, pouco mais de quatro meses depois, assim o fez. Jotabê Medeiros, hoje um dos editores de Cultura em Carta Capital e que atua como repórter cultural há mais de 30 anos, conversou com Revestrés. Em pauta, claro, Belchior. A obra, o homem, o artista, o mito.
Você afirma que Belchior tem a mesma estatura de Chico Buarque e Caetano Veloso. Por quê?
Em primeiro lugar, pelo legado. Os cinco primeiros discos de Belchior, feitos entre 1974 e 1979, são obras de altíssima consistência e mostram um artista de raro poder criativo. Não é comum um artista lançar cinco discos impecáveis em sequência, nem mesmo Chico e Caetano. Depois, pela capacidade que Belchior teve de refletir sobre a identidade brasileira, sobre questões geracionais e políticas, em momento de grande repressão à democracia. Outra grande pista sobre essa estatura está no fascínio que ele exerceu e ainda exerce sobre intérpretes, especialmente mulheres. Gravado inicialmente por Vanusa e Elis, segue apaixonando cantoras, como Ana Cañas, Pitty, Daíra, entre dezenas de outras.
Sua biografia foi lançada apenas quatro meses após a morte de Belchior, e você escrevia há dois anos sobre ele. Foi tempo suficiente para decifrar o enigma Belchior ou há muito em aberto?
Como diz o Lira Neto, uma biografia completa é aquela que não responde todas as questões, mas que deixa o leitor querendo saber mais, querendo conhecer todas as respostas. Não há como esgotar uma vida vivida em 70 anos em um livro, há sempre reentrâncias a explorar. O mais importante, eu acredito, é o autor penetrar na essência da obra de um artista sem esquecer de que um livro é, antes de tudo, uma obra autoral. Que é preciso se colocar, harmonizar a narrativa com sua própria condição de escritor, suas dúvidas e anseios sobre o mundo. Porque senão é apenas uma questão de empilhar fatos.
Belchior foi um cantor do povo que, após lutar a vida toda para ajudar o Brasil a compreender a si mesmo, concluiu que era impossível e foi engolido por sua própria alma atormentada de artista
Belchior, com seu “sumiço”, queria fugir do mundo ou se perder dentro dele?
Queria se reinventar, criar uma nova realidade onde pudesse ser de novo aquilo que imaginava que seria lá na juventude. Isso é comum: as pessoas vão para lugares distantes, abrem pousadas, compram uma cabana de pescador, abandonam a vida feérica das grandes cidades. O problema é que ele era um ícone da MPB, um bigode cobiçado, um artista conhecido. Tinha, obviamente, uma questão de fundo afetivo, ele estava acompanhado de uma mulher, essa mulher tinha uma personalidade marcante, a combinação disso explica também um pouco o sumiço.
Qual das canções de Belchior você acredita que mais pode contribuir para a compreensão da obra dele?
Fotografia 3X4. Creio que é um tipo de manifesto e um belo retrato de seu ideário e entendimento da vida.
Você afirma que Belchior foi “um dos mais obcecados artistas brasileiros”. Como isso transparece em suas canções?
De muitas maneiras. Há obsessão em tratar da literatura em suas letras, por exemplo. Não conheço compositor que tenha feito mais referências intertextuais a outros escritores. A explicação da natureza do ideal jovem é uma outra obsessão. A identidade nacional era grande ponto de investigação da obra dele. Podemos trocar também o termo “obsessão” por meta, eu creio.
Em uma ou duas frases: quem foi esse rapaz latino-americano?
Belchior foi um cantor do povo que, após lutar a vida toda para ajudar o Brasil a compreender a si mesmo, concluiu que era impossível e foi engolido por sua própria alma atormentada de artista. Ou: um simples cantador das coisas do porão.
(Publicada na Revestrés#37- agosto-setembro de 2018)